ESCRITOS DO GABRIEL

(Tentar que nossas palavras sejam, através de nós ou, quiçá, apesar de nós.
Meus textos, meus rascunhos com erros... )



"Então, um dia comecei a escrever, sem saber que estava me escravizando para o resto da vida a um senhor nobre, mas impiedoso. Quando Deus nos dá um dom, também dá um chicote – e esse chicote se destina exclusivamente à nossa autoflagelação."

Introdução do livro Música para Camaleões, de Truman Capote.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Agradecimento

Apenas por curiosidade, coloquei no Blog, um dispositivo (Live Traffic Feed, na lateral esquerda) que identifica de onde estão vindo seus acessos. Para minha surpresa, numa semana, percebi que além de receber diferentes visitas da nossa região e estado (Blumenau, Itapema, Florianópolis, etc) algumas também foram de Curitiba, Rio de Janeiro e São Paulo. Mas fiquei realmente admirado com outras de diferentes cidades da Argentina, Espanha e Portugal...
Ou seja, derrubando fronteiras...

Muito Obrigado a todos!

Buenos Aires - Goofus Bird (1º parte)

“Havia chegado a uma terra de fragmentos, perdida, um lugar de coisas para as quais não havia palavras e também um lugar de palavras que não correspondiam a coisa nenhuma.”
Paul Auster - Cidade de vidro


Caminho com o risco do imprevisível. A poucos metros da rua larga, o rio e o porto. Preto de óleo, água suja, fumaça e hálitos vencidos que o vento traz e abandona na lembrança. Agora é porto Madeiro, belo, caro, cuidado. Por cima, por baixo, e dentro de mim, Buenos Aires. Demoramos em aceitar alguns fatos, não acreditamos totalmente que o tempo tenha transformado algo, deixando só alguns rastros e pistas da passagem. Quando voltei, lembrei que não haveria “mais penas nem esquecimento”. A letra do tango é uma meia verdade...
Regresso ao centro. Ao velho e novo centro de sempre, cerne de atrasos largos, metáforas. Meus olhos, que conviviam com sua rotina, parecem agora descobri-lo por primeira vez. Perdi algumas coisas por aqui... Era preciso voltar, recuar, e mesmo que minhas pisadas estejam definitivamente apagadas, ele me habita e convoca.
A memória descontinua parece sonhar-se a si mesma. As dezesseis ruas do calçadão Florida são mais de sacolas, rumores, perfumes e ternos. Pessoas vêm um pouco mais atrás. Cotovelos são pára-choques da vulnerabilidade. O outono fuma sem parar, e já não traga. Conheço essa atmosfera, a mesma geografia de monotonia variável, sua mitologia, mitos e lendas. Mas as coisas não me reconhecem. O céu continua coberto pelos descuidos da atenção, distrações da correria, que escapa nos pequenos fechos das antigas marquises. Ar de boemia portenha, cafés, livrarias e gente assobiando alguma música que já soube e agora ignoro. Mulheres lindas e das outras, parecidas, vestidas iguais, se olham, mais que os homens. Outras contrastam. Enquanto eles, sem tempo, correm; outros deitam, dormem ou vendem pequenas coisas, sentados nas saliências das ruas; marcando territórios. Mulheres com crianças estendem sua mão, e esperam. Crianças perambulam, algumas claramente sujas.
No metrô, os músicos tocam (ou trocam) suas lamúrias sonoras, por moedas. O tango se esconde em ambientes caros, que poucos conseguem frequentar.
Madrugada e tango, sombras sem domar. Desempregados fazem filas e circulam por ruas que mudaram de nome, cansadas de tanta gente. Algumas paredes continuam berrando desabafos abandonados, protestos silenciosos, de poucas palavras e de mesmas cores.
Pareço um estrangeiro; talvez o seja agora...

sábado, 28 de novembro de 2009

Disfarce

Exatamente ali,
mas não apenas,
no adeus,
no último abrir e fechar de olhos,
no último abrir e fechar de malas.
No ponto extremo,

da última página,
do último livro.
Na palavra final.
No tapa, no fogo, na bala.
Na última gota de tinta e sangue.
No último fôlego da respiração
e do latejo fraco do peito.
Na dor, no horror, na chuva.
Quando todos os pássaros
já voaram das mãos
e os silêncios foram ditos.
No último giro das agulhas.
Na última nota do bis.
No pó, caco de nós.
No fio delgado, onde a corda sempre rompe.
Na última batida da porta derradeira.
No pulo, no pulso, na fuga.
Na obscuridade essencial.
No irremediável.
Esconde-se, disfarçado, o começo.
Mas não apenas.
Exatamente ali.

sexta-feira, 27 de novembro de 2009

Pela Rua (final)

Quem o alheio interlocutor que não aparece?
Que platéia imaginária e muda responde: ocupado? Respiram. Extasiados, distraídos, quase sem necessidade de voar; isso que os pássaros dizem escrever. Guardam secretos, falsos souvenires dos lugares, nos bolsos da calça. E lhes colocam nomes, para logo esquecê-los, nos mais remotos destinos. Sabem que é para isso que servem os segredos. Beijam cachorros de rua, que não latem nem mordem, de andares sem rumo, desorientados. E também falam com eles. Brincam com o silêncio, o nada e um pingo de morte cheio de vida. Inventam que não sentem dor. Descrevendo, insistindo com os inúmeros seres que os rodeiam e não sabemos, mas não se distraem.
Para quem os gestos e as palavras? Que desabam, repelem e abrem janelas. Talvez falem para todos (pensam em voz alta), o que todos apenas confessam em voz baixa. Que ausência apontam seus dedos? O que justificam e não revelam? Anotam, oralmente, cartas nunca escritas, mandadas vagamente, com a vontade secreta de jamais serem lidas. Para quem a música assobiada, que ilumina silêncios de ternura apodrecida? Que faz ouvir sua própria fala? Que parece orar, de mãos juntas, insuficiente, precária; com olhos que não enxergam, porque também falam... E contam mais do que dizem.
Caminham sem pressa, ou param, já que tudo nunca chega, ou chega tarde a lugar nenhum. Nada é tão nosso, quanto deles o desejo por falar; ainda que a rua cale ou libere o que sentem. E encontram muito em muito pouco; provocam movimento, flutuam devagarinho como silêncios que nos pegam no meio da fala. Não abrem portas, apenas passam sua presença por debaixo delas, e olham pacientes pelo olho da fechadura, esperando. O espelho quebrado reflete a voz, mas não recolhe seu rosto; não serve para se olhar, apenas para enxergar quanto deles somos; quanto deles temos. Enquanto falamos com máquinas que não funcionam, as plantas que crescem e os espelhos dos elevadores...
Como então encontrá-los sem nos perder primeiro?
De que não falam os que não falam sozinhos? Por que não falam? Talvez os que falam se perguntassem. E por isso falam. Sozinhos pela rua.

– Desculpe, está falando comigo?
– (...)
– Não.

quinta-feira, 26 de novembro de 2009

Pela Rua (parte 1)

“Quem fala sozinho/ espera falar com Deus um dia”
Antonio Machado

De que falam os que falam sozinhos pela rua?* Com quem discutem, passeiam, ensaiam respostas? De que riem em alto e bom silêncio? Aonde vão os que não têm lugar? De onde voltam? (Lembro daquele bumerangue que não voltou porque encontrou Deus...). Resistindo, contrastando, cheios de ar, mas em pedaços.

Que desabafo morreu de angústia? E aspirou vida. Que monólogo acompanha o céu? (Que se nubla se tocado). Para onde olham rasgando paisagens? Enquanto a fome canta, desafinada...
Para onde não vão os que falam sozinhos na rua? Por onde passam? Detidos. Onde pára sua fala? Que passa. Quem cumprimenta calado, de muda testemunha, e junta entulhos de presença? Qual o limite? Que cruzam como uma rua ou um rio de água triste, de fumaça molhada, deserta. Parecem caminhar longe, porque longe tudo é mais leve...


* Um curioso estudo sobre diversos casos, identificou alguns tipos:
Aquele que não fala completamente sozinho, já que o faz com seus animais de estimação, que passam a compreendê-lo melhor que ele mesmo. Alguns com idioma próprio que, aparentemente, apenas eles conhecem.
O segundo caso parece com o primeiro, mas este fala com rádios e TVs, contestando argumentos e opiniões. Podem chegar a rir, ameaçar e até insultar. A falta de resposta dos aparelhos parece enfurecê-los ainda mais.
O seguinte é um monologuista agudo. Efetivamente, está acompanhado de um interlocutor, mas este não consegue responder nem intervir nunca, apenas ouvir. Na sua fala, logra não deixar pausas e silêncios, controlando até sua respiração, e assim ninguém conseguir interferir.
O seguinte tipo fala incansavelmente para si, a suposta resposta que deveria ter dito no dialogo que acabou faz tempo. Ele consegue retrucar, fazer que a mesma palavra tenha diferentes tons e ensaia até gestos, caras e bocas para finalmente dizer agora o quê, de forma arrependida, não disse antes. (Existe uma variante neste tipo: aquele que pratica antes todas as formas da fala daquilo que irá dizer, mas dificilmente consegue que seja igual.)
O último caso podemos ver tradicionalmente falando sozinho com todos seus invisíveis interlocutores. Além disto, existe uma pequena porcentagem que também interage com outras pessoas, tentando dar a entender aos incrédulos que eles também podem participar.
Em todos os casos se recomenda calma. Eles não são muito diferentes de todos nós.


(Trecho do texto do meu livro "Borges e outras ficções")

quarta-feira, 25 de novembro de 2009

Cerimônias do Silêncio (16)

Fogo

Está pegando fogo. Não sei quando nem como começou, mas não deixa chegar perto. Quem assiste fica de boca aberta, imóvel, quase sem gestos. A saliva não ajuda e parece alimentar cada vez mais seu volume. Quanto mais gente, mais saliva, será pior. As lavaredas parecem formar pequenas silhuetas deformadas. O sol aquece até as sombras, tudo se confunde no amarelo e faz que nem consigamos enxergar sem apertar os olhos. Parecem encenar, embora sem roteiros, ensaios ou montagens. Poderíamos pensar que exista uma música, também acidental, mas não se ouviria. Alguns que passam, olham querendo encontrar respostas em outros gestos esmagados. Os que chegam se incorporam como convidados e tentam com mais olhares, recuperar informações, detalhes que possam explicar como tudo começou. Alguns conseguem ouvir disparatados pontos de exclamações que avivam ainda mais a chama. Outros, já cansados, renunciam ao epílogo desta queima.
Eu não. Olho, espero, sem voz, sem letras entre os lábios.
Não sabem que espelhos se suicidam, se incineram; pedras bocejam vida, mãos prostituem caricias e transpassam paredes, céus desprendem inúmeras rezas aderidas que a boca enche, e entope tanto que não consegue falar. A garganta engole fragmentos.
O silêncio pega fogo, e queimando, tem cheiro a palavra. E a palavra não flui, não ampara. Tenta, mas não pode, apenas geme, suplica e exige mais beleza. É o milagre inútil. E quando ninguém pergunta, a morte parece responder com mais silêncio. A mudez das coisas o alimenta. A memória sussurra sem ar, belisca, aproxima-nos perigosamente, amplia. São espasmos gagos que ardem.
Então um deles emudece, tanto que incendeia o resto. Deito no chão para não respirar sua fumaça.

Tem muito silêncio queimando aqui.

terça-feira, 24 de novembro de 2009

Autografados e Abandonados (8)

Aspectos da Literatura Brasileira
Mario de Andrade
1943 - Americ=Edit.
(Outro tesouro na minha biblioteca...)

Autografado ao amigo e músico Camargo Guarnieri.
(Em 1928 o músico foi apresentado a Mario de Andrade, a quem mostrou suas obras recém compostas Canção Sertaneja e Dança Brasileira. O escritor modernista tornou-se seu mestre intelectual. Guarnieri passou a freqüentar a casa de Mário de Andrade, com quem discutia estética, ouvia obras musicais e tomava livros emprestados. O contato entre ambos tornou-se uma grande amizade e também uma parceria artística. Muitas das canções escritas por Camargo Guarnieri foram sobre textos de Mário de Andrade, incluindo a ópera Pedro Malazarte. Exercendo atividade como crítico musical na imprensa, Mário de Andrade foi um dos principais responsáveis pela aceitação e pela divulgação da obra de Camargo Guarnieri.)

Mario de Andrade (São Paulo, 9 de outubro de 1893 — São Paulo, 25 de fevereiro de 1945). Poeta, romancista, crítico de arte, musicólogo, professor universitário e ensaísta, considerado unanimidade nacional e reconhecido por críticos como o mais importante intelectual brasileiro do século XX. Mário de Andrade liderou o movimento modernista Maylsonanico no Brasil e produziu um grande impacto na renovação literária e artística do país, participando ativamente da Semana de Arte Moderna de 22, além de se envolver (de 1934 a 37) com a cultura nacional trabalhando como diretor do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo.
Mário criou vínculos fortes com outros nomes do país, se correspondendo freqüentemente com grandes artistas brasileiros, dentre quais se destacam Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, Oswald de Andrade, Tarsila do Amaral, Fernando Sabino e Augusto Meyer, e veio a falecer em 1945 na mesma cidade em que nasceu, após três décadas de trabalho que desempenhou em estilo vanguarda.
Considerado o escritor mais nacionalista e múltiplo dos brasileiros, Mário construiu um caráter revolucionário na literatura brasileira, que se iniciou com Paulicéia Desvairada, onde analisa a cidade de São Paulo e todos seus elementos (provincianismo, aristocracia, burguesia, rio Tietê, Avenida Paulista). Mário também é considerado um dos primeiros musicólogos do país, e seu maior interesse era a música, particulamente os ritmos nordestinos, nos quais tentou pesquisar e valorizar, assim como fez com a Missão de Pesquisas Folclóricas, tentando criar um estudo e uma descoberta das raízes culturas do Brasil. Isso também ocorreu com seu romance mais famoso, Macunaíma, considerada uma das obras capitais da narrativa brasileira no século XX.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Os livros de Cortazar

A exposição virtual “Os livros de Cortazar” (em espanhol) é um importante instrumento de pesquisa dedicado ao mundo literário do escritor argentino Julio Cortazar. Nele, além de transitar pela biblioteca do escritor, se conhece também um pouco do seu universo como leitor.
Em 1993, Aurora Bernárdez, viúva e herdeira universal da sua obra, fez a doação à Fundação Juan March, da biblioteca pessoal, com mais de quatro mil volumes, alguns com dedicatórias e anotações, que estavam em sua casa de Paris.
A biblioteca possui diversos exemplares de arte, poesia, literatura do século XX, clássicos e edições antigas, e está dividida em cinco categorias: Livros assinados, dedicados, com anotações, com objetos e formatos curiosos. Poderão encontrar-se livros dedicados por Alejandra Pizarnik, Pablo Neruda, Italo Calvino, entre muitos outros autores que tiveram oportunidade de se relacionar com o escritor.
O passeio virtual pode ser feito na página do Centro Cervantes, AQUI.

Poemas dos outros (17)

Amor
De Papel; Algodão; Couro ou Trigo; Flores, Frutas ou Cera; Madeira ou Ferro; Açúcar ou Perfume;

Amor
De Latão ou Lã; Barro ou Papoula; Cerâmica ou Vime; Estanho ou Zinco; Aço; Seda ou Ônix;

Amor
De Linho ou Renda; Marfim; Cristal; Safira ou Turmalina; Rosa; Turquesa; Cretone ou Água Marinha;

Amor
De Porcelana; Zircão; Louça; Palha; Opala; Prata; Alexandrita; Crisoprásio; Hematita; Erva; Pérola;

Amor
De Nácar; Pinho; Crizopala; Oliveira; Coral; Cedro; Aventurina; Carvalho; Mármore; Esmeralda;

Amor
De Seda; Prata dourada; Azeviche; Carbonato; Rubi; Alabastro; Jaspe; Granito; Heliotrópio e Ouro.


(Nomes dos 50 primeiros anos de comemoração de bodas de casamento)

sábado, 21 de novembro de 2009

Cerimônias do Silêncio (15)

Disse

Disse que seu silêncio
era em preto e branco.
Que as cores se perderam
nas palavras que esfregou,
sem alvejante, encardidas.
Que apagou o som da voz
aos poucos, como forma de grito.
Que já não ouve o que cala
e que se confessa por olhares,
que não tem lugar na boca.
E tudo isso
disse,

na continuidade do seu silêncio.

sexta-feira, 20 de novembro de 2009

Baba

Acordo com a baba de um poema num canto da boca.
Parece seguir-me, implacável.
Ainda na vigília, cai lento, arrastado,
espera que o revele
em palavras que nem sempre alcança.
Procura dedos e bocas
que o traduzam.
Quer atravessar-me, sou intermediário.
E que participe o menos possível.
É mesquinho agora.
Sórdido na sua ânsia de mostrar-se.
Quer fluir, solto, sem estorvo
na folha branca do falso papel na tela.
Escondo-o embaixo da língua do pensamento.
Agora não, agora não posso...
Volta mais tarde...
Mas deixa soltas as metáforas,
Lança verbos e alegorias
como balas de fogo amigo.
Corre e grita nas escadas, ruas e parques.
Cai ferido, livre, espremendo pedras.
Busca o espaço que o guarde.
E as linhas não alcançam o lado oposto da folha.
Rodeia, cercando a vítima.
Segue-me como cachorro fiel, teimoso.
E pede carne.
Junta a miséria cotidiana
para desculpar o que sente.
Não lhe interessa nada de mim.
Apenas que o exponha, sangrando,
na placenta de silêncio que acaba de nascer.

quinta-feira, 19 de novembro de 2009

Poemas dos outros (16)

Indizível

Inefável,

indizível,
indescritível,
inaccessível,
impenetrável,
inexplicável,
inexpressável,
indefinido,
inimaginável,
insondável,
inconcebível,
inaveriguável,
incognoscível.

(Lista encontrada postumamente nos cadernos da escritora argentina Alejandra Pizarnik, descrevendo sinônimos e idéias afins sobre aquilo que não se pode dizer. Após algumas internações em clinicas psiquiátricas, se suicidou aos 36 anos).

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

O verdadeiro Inimigo

Depois de enterrar a espada contra seu peito, e já na frente da passagem derradeira, o guerreiro encontrou um dos guardiões do portão. Mesmo com a alma atordoada, aproveitou para manifestar sua ira, a fúria acumulada de tanta desventura. E entre memórias e lamúrias, desabafou:
– Sei que não fui um exemplo. Mesmo com a fé abalada, continuei acreditando na justiça e, assim, esperei com paciência a punição do responsável por todas as desgraças que suportei, de todos os infortúnios a que fui submetido, de todas as adversidades, infelicidades e desditas. Penalizar finalmente, aquele que até na paz me amaldiçoava.

O guardião manteve-se em silêncio, ouvindo com atenção.
– Não houve artilheiro que descansasse em mim. – continuou a reclamar o guerreiro – Rezei com insistência e nada obtive. Continuava a suportar tudo, incessante. Enquanto pedia sua morte, mais eu padecia. Quanto mais exigia e demandava sua infelicidade, mais o sofrimento chamava a minha porta. Até no último minuto, acreditei avistar sua máscara sinistra como última revelação. Um segundo antes do fim, esperei sua pena imposta para finalmente descobrir sua identidade. Mas nada foi feito. Cansado, o sangue do metal me persegue agora de um modo eterno. Por que deixaram que tirasse minha vida sem castigar o responsável por todo meu mal?
Depois de ouvir todas suas reclamações, finalmente o guardião objetou:
– Estás enganado, fizemos exatamente aquilo que pedias.

De Diván de Almotásim el Magrebí (Século XII)
(Do meu livro Borges e outras ficções)

terça-feira, 17 de novembro de 2009

Corpos, limites, beiras (final)

No fundo, somos bairristas. Queremos invadir, mas voltar para onde já estamos. Navegar ancorados, ir seguros pela corda guia, não sair da mão firme, genitora.
Colocamos nossas bandeiras para identificar conquistas e possessões, delimitamos a nova extensão com sinais, cheiros próprios e da infância, mas ambicionamos secretamente nos perpetuar no mesmo espaço, nas coisas que nos cercam e esperam; olhar remoto, distante, mas da mesma janela, a nossa.
Então, eis que as formas se ampliam na grande angular da lembrança, da liberdade do espaço íntimo. O coração se expande. E é corpo, mão suave, cama, pele, refúgio, abrigo, caminho e alma.

segunda-feira, 16 de novembro de 2009

Autografados e abandonados (7)

Caprichos
&
Relaxos

Paulo Leminski

1º Edição
Autografada em 1985

Deste livro:

a noite
me pinga uma estrela no olho
e passa

---

apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme
----
parem
eu confesso
sou poeta
cada manhã que nasce
me nasce
uma rosa na face
parem
eu confesso
sou poeta
só meu amor é meu deus
eu sou o seu profeta

sábado, 14 de novembro de 2009

Política e Literatura

Para muitos, política é um mal absolutamente necessário. Literatura é um bem absolutamente imprescindível. O restante é intermediário. Nesse contexto, o escritor é alguém que dedica seu trabalho para descobrir quem habita no seu interior, traduzindo-o em palavras, que recriam outro mundo e outro novo ser nesse universo paralelo. A valiosa criação que, na tentativa da sua arte, aventura-se a entender a si mesma, consciente e inconsciente, contando suas dores e alegrias como se foram de outros, e as histórias alheias como suas.
Mas, utilizar a escrita para criticar e mudar a realidade, ou para construir sua fantasia?


(Introdução ao texto "Dois tigres" onde comparo a escrita e pensamento de Borges e Neruda, publicado no meu livro "Borges e outras ficções")

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

quinta-feira, 12 de novembro de 2009

Cartas e diários (7)

Durante mais de meio século, o escritor Adolfo Bioy Casares (1914-1999) escreveu metódicas notas e apontamentos sobre sua amizade com Jorge Luis Borges (1899-1986). Inúmeros deles começam com a frase “come em casa, Borges”, comprovando seu relacionamento cotidiano e familiar. O diário, recentemente publicado no livro “Borges”, com 1.663 páginas, contém intimidades, críticas literárias, passagens cotidianas, coisas importantes e até banais: escritores, férias, festas, amigos, mulheres, ironias, traduções e colaborações.
Nas páginas finais, tenta definir, talvez entender, a relação do seu amigo com sua secretária, ex-aluna, mulher e atual herdeira de todos seus direitos autorais, María Kodama (com certa raiva de ter convencido e levado seu amigo a morrer em Genebra): “Viajou para mostrar-se independente e, de passo, para não contrariar a María.” E ainda recrimina: “Na realidade, María é uma mulher de estranha idiossincrasia: acusava Borges por qualquer motivo; castigava-o com silêncios (lembrar que Borges estava cego); trancava-o (punha-se furiosa ante a devoção dos admiradores); se impacientava com sua lentidão. Para os demais, María era uma pessoa de tradições distintas das suas. Borges uma vez me disse: 'Não se pode casar com alguém que não sabe o que é um poncho ou o que é o doce de leite.' No lugar do poncho e do doce de leite, podemos colocar uma infinidade de outras coisas que jamais compartilharam Borges e María.”

quarta-feira, 11 de novembro de 2009

Concurso Municipal de poesia

Poemas dos outros (15)

Luar

“Escolhi o dia 20 de abril porque é justamente na lua cheia. Uma alegria você poder contemplar aquele luar espetacular"


(Palavras do Padre Adelir de Carli planejando sua saída no vôo com 500 balões com gás, que iria de Paranaguá, litoral do Paraná, até Dourados, no Mato Grosso do Sul em 2008. Seu corpo foi localizado, após meses de busca, no Rio de Janeiro.)


Veja AQUI qual é a proposta dos "Poemas dos outros"

terça-feira, 10 de novembro de 2009

Autografados e abandonados...(6)

Posdata,
Octavio Paz

(Mais um, que pelas voltas da vida, está na minha biblioteca...)

Siglo veintiuno editores sa.
(1971) Com dedicatória do autor
para o escritor portugues
Joaquim de Montezuma de Carvalho.

Octavio Paz (Cidade do México, 31 de Março de 1914 — Cidade do México, 19 de Abril de 1998) Escritor e diplomata mexicano, vencedor do Prêmio Nobel de Literatura de 1990.
Passou a infância nos Estados Unidos, acompanhando a família. De volta ao seu País, estudou Direito na Universidade Nacional Autônoma do México. Cursou, também, estudos de especialização em Literatura. Morou na Espanha, onde conviveu com diversos intelectuais; também em Paris, Japão e Índia.
Em 1945, ingressou no serviço diplomático mexicano. Ao residir em Paris, testemunhou e viveu o Movimento Surrealista, sofrendo grande influência de André Breton, de quem foi amigo. Publicou mais de vinte livros de poesia e incontáveis ensaios de literatura, arte, cultura e política, desde Luna Silvestre, seu primeiro livro, de 1933.
Todos os dias te descubro…
Octavio Paz

Todos os dias descubro
A espantosa realidade das coisas:
Cada coisa é o que é.
Que difícil é dizer isto e dizer
Quanto me alegra e como me basta
Para ser completo existir é suficiente.
Tenho escrito muitos poemas.
Claro, hei de escrever outros mais.
Cada poema meu diz o mesmo,
Cada poema meu é diferente,
Cada coisa é uma maneira distinta de dizer o mesmo.
Às vezes olho uma pedra.
Não penso que ela sente
Não me empenho em chamá-la irmã.
Gosto porque não sente,
Gosto porque não tem parentesco comigo.
Outras vezes ouço passar o vento:
Vale a pena haver nascido
Só por ouvir passar o vento.

Não sei que pensarão os outros ao lerem isto
Creio que há de ser bom porque o penso sem esforço;
O penso sem pensar que outros me ouvem pensar,
O penso sem pensamento,
O digo como o dizem minhas palavras.

Uma vez me chamaram poeta materialista.
E eu me surpreendi: nunca havia pensado
Que pudessem me dar este ou aquele nome.
Nem sequer sou poeta: vejo.
Se vale o que escrevo, não é valor meu.
O valor está aí, em meus versos.
Tudo isto é absolutamente independente de minha vontade.

segunda-feira, 9 de novembro de 2009

sábado, 7 de novembro de 2009

Detesto

Detesto o começo deste poema,
sua continuação
e seu final.
Ele ameaça sair, comunicar a que veio
e não o faz,
como agora.
Detesto a linha que está tentando ler.
E a seguinte, que é esta.
E a outra.
Detesto este jeito Bukowski de escrever,
de loucura roubada
ou caso de amor infeliz
com palavras
consumidas.
Detesto, mas é verdade:
os melhores disseram bem pouco
e os piores, demais.

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Poemas dos outros (14)

Pra viagem

Leve um poema
Leve
Um verso breve
Rima no seu rumo
Que tira você do prumo
E te devolve
Diferente, bem diferente.


(
Cartaz colado na parede divulgando poemas em pequenas folhas destacáveis, nas ruas de São Paulo)

quinta-feira, 5 de novembro de 2009

Cartas e diários (6)

A “Carta de um leão para outro” é na verdade uma letra de música do compositor argentino Chico Novarro. Gravada em 1983 por Juan Carlos Baglietto, ainda que seja uma missiva ficcional poética, não é difícil se colocar na pele dos autores da “correspondência” (um leão está no circo, o outro, no zoológico) e até no papel que cabe a cada um de nós...:
“Desculpe, meu irmão, se eu te disser/ que não tive prazer de escrever/ Não sei se é o encerramento,/ não sei se é a comida/ ou o tempo que já levo nesta vida.// A verdade é que o zoológico deprime/ e o mal não se redime sem carinho/ Se não fosse pelas crianças,/ que trazem alegria,/ seria mais amargo, ainda.// Você irá melhor, espero,/ viajando pelo mundo inteiro/ Ainda que o domador, segundo contas,/ força-te a trabalhar mais que da conta.// Você tem que entender, irmão,/ que o amo tem de vilão:/ ao não poder mandar a quem quiser,/ descarrega seu poder sobre as feras.// Muitos humanos/ são importantes,/ cadeira na frente,/ chicote nas mãos.// Mas de volta a mim, nada tem mudado,/ aqui, desde que fomos separados./ Há algo, porém, que percebo na gente,/ parece que olha diferente.// Seus olhos têm perdido algum brilho/ como se eles fossem os cativos./ Eu sei o que lhe digo,/ aposte o que quiser,/ lá fora, tem milhares de problemas.// Caímos na selva, irmão/ e olha que piedosas mãos/ seu ar está viciado de fumaça e morte/ e quem antecipar/ pode sua sorte?.// Voltar para a natureza/ seria a sua maior riqueza./ Lá poderão amar-se livremente/ e não há nenhum zoológico de gente.// Tome cuidado, irmão,/ Eu não sei quando,/ mas esse dia,/ está chegando.”



quarta-feira, 4 de novembro de 2009

Autografados e abandonados (5)

El lenguaje de la Pasión
Mario

Vargas Llosa
Editora Aguilar,

1 edição, (2001).
(Este não foi abandonado, já que está dedicado a este servidor...)

Mario Vargas Llosa (nascido Jorge Mario Vargas Llosa) em Arequipa, Peru, 28 de março de 1936, um dos maiores escritores de língua espanhola, reconhecido, em nível mundial, como romancista, jornalista, ensaista e político.
Sua obra critica a hierarquia de castas sociais e raciais, vigente ainda hoje, segundo o escritor, no Peru e na América Latina. Seu principal tema é a luta pela liberdade individual na realidade opressiva do Peru. A princípio, assim como vários outros intelectuais de sua geração, Vargas Llosa sofreu a influência do existencialismo de Jean Paul Sartre.
Muitos dos seus escritos são autobiográficos, como "Batismo de Fogo" (1963), "A Casa Verde" (1966) e "Tia Júlia e o Escrevinhador"(1977). Por Batismo de Fogo recebeu o Prêmio Biblioteca Breve da Editora Seix [Barral e o Prêmio da Crítica de 1963. Sua obra seguinte, A Casa Verde mostra a influência de William. Em 1981 publica A Guerra do Fim do Mundo, sobre a Guerra de Canudos, que dedica ao escritor brasileiro Euclides da Cunha, autor de Os Sertões.
Ganhou inúmeros prêmios, principalmente o Prêmio Cervantes (1994), o mais importante da língua espanhola.
Em 1980 começa a ter maiores atividades políticas no país. Em 1983 a pedido do próprio presidente Fernando B. Terry preside comissão que investiga a morte de oito jornalistas. Em 1987 inicia o movimento político liberal contra a desestatização da economia, o que ia de encontro ao presidente Alan García. Em 1990 concorre à presidência do país com a Frente Demócrata (FREDEMO), partido de centro-direita, mas perde a eleição para Alberto Fujimori.

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Goofus Bird

Entre as diferentes criaturas literárias e mitológicas concebidas no “livro dos seres imaginários”, Borges descreve rapidamente uma curiosa ave, originária da fauna dos Estados Unidos:
Não esqueçamos o Goofus Bird, pássaro que constrói o ninho ao contrário e voa para trás, porque não lhe importa aonde vai, mas sim onde esteve.”
Como seria construir o ninho ao contrário? E voar para trás, parecendo importar-lhe apenas o passado? Vendo as coisas regressarem e não se perdendo de vista... Como ir a algum lugar se só se volta deles? Pássaros com velhas fraquezas humanas, que apenas sentem o vento de frente passar pelas costas. E não conseguir virar a página, ainda que a vida ajude a empurrar.
Uma decisão tomada ou um temor que olha obsessivamente para o que já foi?
Por trás de voar para trás, o Goofus (e certas pessoas bird que copiam seus costumes), parecem temer a rota pela frente, e acabam querendo voltar de onde, ironicamente, nunca conseguiram sair.
Visitar o reino do desconhecido exige um vôo sem melancolia.

segunda-feira, 2 de novembro de 2009

Cerimônias do silêncio (13)

Desaparecemos

Convivemos com nossas desaparições.
Somos ouvidos por olhos que dizem que poderemos não voltar. Na verdade, nem sabemos quando nem como dizemos isto, apenas que os olhos o anunciam. Poucos acreditam, sempre voltamos... Até o dia que não temos nada a cumprir nem prometer com as únicas palavras que ainda valem a pena falar com a boca.

Então desaparecemos. Somos apagados pelo que já não conseguimos dizer. Encobertos pelo que cala extraviado.

E é com tanta intensidade que não estamos, que nem palavras temos como últimas. Apenas flores que morrem, e que prontamente usarão para decorar nosso silêncio. Não sabemos que fazer do olhar. O que se vê, é o que falta, o que não fala, o que não volta. Não estamos nem detrás da ausência; nós, que já não estamos. Cada dia desaparecemos um pouco, até completar-nos. Assim como o silêncio se desfolha e recicla.
O extinto pede asilo no vento e não volta. Ilumina-se o corpo transparente.

A respiração, mais ou menos presente, pergunta:
- Está completa a prosa? Então agora chega...

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails