ESCRITOS DO GABRIEL

(Tentar que nossas palavras sejam, através de nós ou, quiçá, apesar de nós.
Meus textos, meus rascunhos com erros... )



"Então, um dia comecei a escrever, sem saber que estava me escravizando para o resto da vida a um senhor nobre, mas impiedoso. Quando Deus nos dá um dom, também dá um chicote – e esse chicote se destina exclusivamente à nossa autoflagelação."

Introdução do livro Música para Camaleões, de Truman Capote.

segunda-feira, 30 de abril de 2012

Lançamento Revista Ruído Cultural


Quinta-feira, dia 3, será o grande lançamento da Revista Ruído Cultural (no Bituin). Participo com 3 páginas dedicadas a livros e literatura.
E assim como fala sua proposta, a Ruído Cultural é uma revista distribuída gratuitamente  com a linha editorial focada na Cultura & Comportamento.
Seu objetivo é fazer com que as pessoas tenham acesso facilitado à Cultura de nossa região, além de matérias atraentes, conteúdo relevante, design diferenciado e um espaço onde possam mostrar aquilo que fazem. Nós acreditamos, que desta forma, elas comecem a valorizar cada vez mais a cultura e as artes de forma geral, prestigiando mais eventos, sendo mais críticas e inclusive, cobrando mais espaço para do poder público e dos órgãos ligados à cultura.

segunda-feira, 23 de abril de 2012

Salto duplo (2)

Não se arriscava a pular
sem a rede de segurança.

Era um jeito de aparentar
o perigo que corria.

Embora a verdadeira façanha,
foi ocultar habilmente
as asas,
nas precárias roupas de trapezista.

terça-feira, 17 de abril de 2012

Salto duplo

Figuras, movimentos, apoios e saídas.
Giros, balanços, travas
sem contato do chão.
Não sei quantas voltas já dei,
mas justamente falhei
no salto duplo sem rede.

Fui um acrobata que no final
não encontrou mais tua mão
no pulo que inaugura esta morte.

quarta-feira, 11 de abril de 2012

Só empresto o que puder presentear

“Liberdade completa ninguém desfruta, mas, nos estreitos
limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda podemos
nos mexer”.
Graciliano Ramos


Odeio emprestar livros. Gosto de tê-los comigo, de relê-los se quiser, de tocá-los e sentir o cheiro da sua presença. Saber que eles estão aguardando, que já foram lidos e ainda esperam renovados a cada leitura. Mas como nunca consegui não emprestá-los, fiquei sem alguns e acabei perdendo não só o livro como a memória das pessoas a quem o emprestei.
Pensei fazer igual ao tempo dos antigos e valiosos manuscritos, onde era costume escrever pragas nos livros, amaldiçoando quem os furtasse. Cheguei até copiar um texto daquela época para colocá-lo em qualquer página e quando menos o leitor esperasse, dar de cara com a mensagem:
A quem furtar um livro da minha biblioteca, que se transforme em uma serpente suas mãos e o subjugue, que seja atacado por paralisia e todos os seus membros sejam amaldiçoados. Que agonize em dor, gritando perdão. Que não haja descanso para sua agonia, até que se afunde na dissolução. Que os vermes de livros roam suas entranhas...”.
Mas ninguém precisou agonizar, ser atacado ou roído pelo remorso. Muito menos pedir perdão por isso. Entendi que, ao longo do tempo, nossa memória vai formando uma biblioteca díspar, feita de livros, lembranças ou de páginas soltas, e tal vez em essas páginas esteja já o essencial, e cuja leitura foi uma felicidade e que gostaríamos inconscientemente de compartilhar. Classificar minha biblioteca foi uma maneira silenciosa de exercer o artifício do meu julgamento e, com ele, poder dividir meus gostos.
Comecei emprestando aqueles sem os quais eu poderia viver. Mas a dor foi de flagelo. Essa norma foi logo substituída por outra que descobri com a perda: só empresto o que puder presentear. Mesmo sabendo que ainda que comprando muitos outros, não serão nunca como esses. Que é um livro, se não o abrimos? Eles guardam parte de nós e merecem nosso cuidado. Um único livro ameaçado ocasiona uma perigosa perda na biblioteca universal. Eles eternizam nossa memória. Por isso acredito estar cercado de belas metáforas.
Talvez cada um de nós seja uma mera letra no complexo texto cifrado do universo. De fato deixei de emprestar livros, agora só os dou. E foi isso o que fiz quando soube da idéia de fazer uma biblioteca no presídio municipal.
Uma pesquisa da Universidade local tinha levantado que a leitura estava sendo feita só no pavilhão dos ‘isolados’, onde ficam os presos que, por uma razão ou outra, não podem deixar suas celas. Lá circulam, num caixote, velhos livros emprestados uma vez por semana, uma iniciativa que poderia estimular a todos agora, com a campanha de arrecadação. Ela coincidiu com o final da faxina na minha biblioteca e com a vontade de pôr ordem no caos literário de anos. Sem ordem, uma biblioteca seria um simples depósito de livros. Um caos no qual, às vezes, podemos suspeitar que exista uma outra ordem. Cada livro revelado ao lado de outro, e este, ao lado de um terceiro, ramificando-se pelas prateleiras, ganha vida própria, multiplicando-se entre estantes e corredores, procurando a biblioteca ideal, completa, inconcebível. Quando a vida cai, o mundo se desvanece e a biblioteca, iluminada por suas vozes, vira meu paraíso. Livros abrem portas, entortam vigas e podem levar à liberdade absoluta. Na biblioteca descobri minha tábua de salvação, meu antídoto, minha lâmpada dos pedidos e desejos. Uma ilha, na qual ancorei. Uma ilha chamada livro, à qual gostaria que chegassem as respostas escondidas, quando tudo o que ela consegue fazer é me trazer mais desejos. Livros me sacodem, mordem e me ferem como a mais dolorosa das desgraças, e me recuperam com o remédio diluído na tinta preta impressa no papel. No acúmulo e no desprendimento, achei minha companhia e meu consolo.
Entre os que primeiramente separei, fiz uma melhor seleção com aqueles que se encaixariam no perfil do suposto novo leitor. Fiquei realmente feliz ao descobrir livros de cuja existência não lembrava e que, todavia, se revelam extremamente importantes para mim. Na verdade, minha preocupação tinha mudado, querendo encontrar alguns, tentando adivinhar gostos e preferência de quem pudesse lê-los.
A classificação aumentava e diminuía, descartava ou incluía e comecei a perceber que justamente aqueles que não tinham entrado na lista eram os que melhor ou mais facilmente seriam assimilados por eles. Mas afinal, a limpeza ou a escolha? Tentei ser imparcial e depois liguei para que alguém passasse a recolher minha doação.
Naquela mesma tarde um detento, daqueles que passam só a noite na prisão, veio em casa. Timidamente subiu a escadaria em caracol, à esquerda da entrada que leva até uma galeria com um pequeno piso de madeira que dá para a sala de leitura com estantes de livros alinhadas. Algumas delas apanhando poeira.
– Sua biblioteca parece ser enorme. Sua casa toda parece ser uma biblioteca... – falou notadamente surpreso, enquanto o imaginei olhando de cima para baixo a distribuição das prateleiras.
– Agora que está um pouco mais em ordem, assusta menos – respondi em tom de exagero – Tem que ver na confusão como parece um labirinto feito de colunas de volumes empilhados querendo engolir leitores... Muitas vezes me perdi em meio a velhos tomos de edições esgotadas, gravuras do século passado e enciclopédias as quais eu cheguei a ler como a um livro desde a letra “A”.
– O senhor parece feliz e empolgado quando fala dela...
– Quem conhece a biblioteca, conhece diversas felicidades, meu jovem...
Acredito que tenha ficado surpreso diante dos espelhos que propositalmente duplicavam as prateleiras até o infinito, e que agora cercam o mundo real de sombras e luzes a que estou acostumado. Quanto mais eu falava, mais ele parecia extasiado, demonstrando-me sua admiração por cada detalhe da sua estrutura. Ela possui em si a potencialidade do mágico. Em algum lugar dessa fabulosa arquitetura, existe uma porção diabolicamente divina ou uma chave que abre a porta do prazer desconhecido. E ele agora parecia estar descobrindo esse feitiço em cada passo que dava. Aqueles que eu já tinha escolhido estavam separados. Na realidade não sabia quantos eram exatamente, nem o título de todos. E foi justamente isso o que ele acabou perguntando:
– Sua doação parece ser a maior até agora. Quantos livros o senhor está doando?
– Na verdade não sei. Comecei a selecioná-los e não contei quantos...
– E no total, o senhor sabe quantos livros tem?
Poderia ter arriscado qualquer número parecido a cinco mil que a pergunta estaria respondida sem questionamentos, mas preferi não revelar nenhum número e responder que só quando terminasse minha arrumação poderia saber com exatidão.
– O senhor realmente quer doá-los? Não irá sentir falta?
– Possivelmente, mas é preciso decidir se queremos proteger e exibir os livros ou dá-los a ler. Ainda que não saibamos, sempre estamos voltando a ler o mesmo. Faço questão de dar aqueles que possivelmente tenho duplicados ou que agora possam ser mais úteis aos outros que a mim.
Poderia também ter argumentado que cada geração escreve o mesmo texto, conta o mesmo conto, publica em definitivo o mesmo livro. Com uma pequena diferença de voz, modulação ou acento gramatical... Que em todos meus anos de leitura, não concordei com muitos deles, embora sempre tenha percebido algo de sagrado e imortal na sua composição; mas preferi guardar algumas justificativas para mim mesmo.
No tempo que passou visitando os corredores, e enquanto conversávamos sobre minha doação, ele concordou em me ajudar a preencher um formulário com alguns dados, que depois assinei. Não consegui fingir. Confessei que preferiria contribuir dessa maneira, dá-los de presente a ter que emprestá-los e nunca mais vê-los. Que ficaria aflito sabendo que o livro que deveria andar de mãos em mãos continuava parado sobre as mesas ou nas prateleiras, impossibilitado de passar sua mensagem. Morrendo seu autor, a obra, o leitor e minha biblioteca. Ele contou que tinha aprendido a gostar de ler quando teve que cumprir sua pena de forma integral na cela.
– Imagino então que deverá ter outros cômodos, outras áreas cheias de livros....
– Não... Minha biblioteca está na sua frente, grande o suficiente como você pode ver. Os outros cômodos são apenas de leitura...
– Me pareceu ver uma prateleira com só um livro na parte de cima...
– Sim... Ela não é casual. Está com aquele livro que definitivamente não quis saber nada comigo. Sua leitura, seu entendimento e prazer me foram negados. Ele não me ama como leitor, não me escolheu para decifrá-lo e deve ser por isso que nunca consegui passar das primeiras páginas. E como a leitura é uma forma de felicidade, não me esforcei e acabei abandonando-o lá encima. Quem sabe se em outro tempo, quando ele consiga transformar-nos, não alcancemos essa revelação...?
– (...) Bom, agradeço e reconheço sua atitude e desprendimento. Eles serão muito bem aproveitados.
Quando apertou minha mão na despedida, percebi que estava tenso, algo preocupado. Assim que terminou de carregar, fez sua última pergunta:
– Por que fez questão de doar todos seus últimos livros, de ficar só com aquele único perdido na estante?
Fechei com calma a porta, respondendo sua dúvida com um sorriso. Para meus olhos cegos, aqueles livros agora estavam em branco. De todas as coisas que me aconteceram, a menos importante foi a cegueira. Embora seja rodeado por infinitas sombras de prateleiras e o eco de antigas leituras, estou condenado a viver no centro do seu labirinto. Que outra bela sorte me resta? Só aquilo que se foi é o que nos pertence.
Continuo sendo em silêncio a soma do que li e perdi e que ainda guardo como revelação.

quarta-feira, 4 de abril de 2012

Silêncios...

“Llega un día en que la poesía se hace sin lenguaje, día en que se convocan los grandes y pequeños deseos  diseminados en los versos, reunidos de súbito en dos ojos,  los mismos que tanto alababa en la frenética ausencia de la página en blanco”.

Alejandra Pizarnik
Fragmento de “Pequenos Poemas em Prosa”.
Publicado em “La Nación”,
Buenos Aires (21 de março, 1965).

“Se ha perdido el significado de la palabra más obvia.
Y aún escribo, aún me precipito con urgencia a narrar estados de asombro y de ira. Unalevísima presión, un nuevo reconocimiento de lo que te acecha y ya no escribirás. Estamos a pocos pasos de una eternidad de silencio”.

ibidem
29 de diciembre, París, 1962.




Lemos que o silêncio é o prelúdio de abertura a uma revelação. Por outro lado, o mutismo é o fechamento decidido a qualquer revelação; é a recusa em receber ou transmitir qualquer ideia ou pensamento; é a atitude deliberada de não revelar, nem por gestos ou palavras, a sua intenção ou pensamento.
O silêncio abre uma passagem, o mutismo a fecha.
Segundo as tradições, houve um grande silêncio antes da criação do mundo, e, ao final dos tempos, haverá outro ainda maior. O silêncio antecede e envolve os grandes acontecimentos, os grandes fatos. O mutismo os oculta ou os disfarça. O silêncio dá às coisas grandeza e majestade; o mutismo as degrada e as deprecia. Um marca o progresso; o outro indica uma regressão. O silêncio é uma grande cerimônia.
Este é um livro sobre silêncios. Mesmo que muitas palavras faltem e outras pareçam dissecadas, aprisionadas, evasivas, envoltas de mais silêncio. Difícil de ser alcançado. Para alguns, ausência de som; para outros, a arte de escutar o que não é dito. Prefiro a invisibilidade da palavra e sua nudez.
De forma parcial, conseguimos contemplar apenas seu eco, habitado de forma residual, inefável, interior, primordial. Todos eles convergem e se afundam em palavras que prescindem. De um silêncio vão a outro, ao acabamento da linguagem perfeita, reduzindo e dissolvendo para diferenciar sua voz. Seu ir e vir persegue o inominável. E o prolonga, alternadamente, de forma infinita. Somos o grande ouvido daquilo que se deixa ouvir. E nos interpela ou transpassa.
Cada um possui seu próprio silêncio”, afirma o místico indiano Krishnamurti, que expõe, para que se escute, sem nenhum movimento do pensar, a partir da quietude completa, que “o silêncio que há entre as nuvens e o silêncio que existe entre as árvores tem uma diferença imensa. O silêncio entre dois pensamentos é atemporal; o silêncio do prazer e o do medo são palpáveis. O silêncio artificial, que pode fabricar o pensamento, é morte; o silêncio entre ruídos é ausência de ruído, porém, não é o silêncio, tal como a ausência de guerra não é a paz. O sombrio silêncio de uma catedral, de um templo, é um silêncio de séculos e de uma beleza especialmente construída pelo homem. Este é o silêncio do passado e do futuro, o silêncio do museu e do cemitério. Todavia, tudo isto não é silêncio.”
Silêncios e palavras que, de tão independentes, fazem de cada escritor seu escravo. Viajamos nelas e não são poucos os momentos em que sentimos sua ausência. Ficam engasgadas, presas e impedem nossa fala. E aí falamos muito, sem usar nenhuma. Outras, vazias, não representam o que queremos ou expressam o que elas próprias sentem. Levamos, de algumas delas, mordidas boca adentro. De certezas, tom e dizer errados; de momentos, medos e perdão. Elas têm a importância da oportunidade que não volta e a sabedoria daquela que está perdida. Às vezes fogem; esquecidas, são levadas pelo vento (na verdade ficam suspensas no ar e algumas, poucas, conseguem precipitar-se no fluxo misterioso da inspiração) ou têm o peso daquilo que nunca é dito. Alguns sentimentos não cabem nelas; então, por esse motivo, apenas conseguem suspirar. O que separa o desejo da palavra?
Julio Cortázar sabia que elas também sofrem: “Se algo sabemos, nós, os escritores, é que as palavras podem chegar a cansar-se e ficar doentes, como se cansam e ficam doentes os homens e os cavalos. Há palavras que, à força de serem repetidas, e muitas vezes mal empregadas, terminam por esgotar-se, por perder pouco a pouco sua vitalidade...”. Alguém já disse que deveríamos usar palavras como se tivéssemos de pagar para publicá-las ou dizê-las? E, claro, algumas seriam mais caras. Outras, de tanto valor, nunca poderiam ser ditas. Talvez falemos tanto para não dizer-nos os silêncios.
Há uma palavra, e apenas essa palavra é a que melhor expressa, a que, possivelmente, chegue mais perto do que sabemos ser inclassificável, inteligível. A eloquência analógica do indizível. As palavras, então, se detêm e nada manifestam. Olhamos sem ver o invisível; ouvimos sem entender o inaudível; tocamos sem ver o imperceptível; porque haveríamos de entender ou sermos afetados pelo silêncio diluído no próprio silêncio?
O escritor uruguaio Eduardo Galeano recomenda, com sabedoria, nunca escrever por escrever, mas escrever somente palavras que queiram ser melhores que o silêncio. Aquilo que desconhecemos costuma ser mal interpretado. E, prestar atenção a seu significado, é tentar interpretar com palavras aquilo que não tem nenhuma.
Todavia, Rubem Alves afirma que “todas as palavras, tomadas literalmente, são falsas. A verdade mora no silêncio que existe em volta das palavras. Prestar atenção ao que não foi dito, ler as entrelinhas. A atenção flutua; toca as palavras sem ser por elas enfeitiçada. Cuidado com a sedução da clareza! Cuidado com o engano do óbvio!”
Reeduquemos, portanto, nossa percepção, acendamos e apuremos os sentidos, degustemos a palavra na boca, porque estamos rodeados de poesia e silêncio; e isto é uma grande cerimônia!
Eu não encontrei melhor forma de fazê-lo.


Introdução a meu livro “Cerimônias do Silêncio”

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