ESCRITOS DO GABRIEL

(Tentar que nossas palavras sejam, através de nós ou, quiçá, apesar de nós.
Meus textos, meus rascunhos com erros... )



"Então, um dia comecei a escrever, sem saber que estava me escravizando para o resto da vida a um senhor nobre, mas impiedoso. Quando Deus nos dá um dom, também dá um chicote – e esse chicote se destina exclusivamente à nossa autoflagelação."

Introdução do livro Música para Camaleões, de Truman Capote.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2012

Geografia da alma

Para esta voz que me resta
Para o galho que me segura
Para esta fé que vacila
Para a palavra a prova de balas
Para a bala de cada dia
Para esta nudez dos outros
Para esta boca apenas tua
(excessivamente minha)
Para os três tigres que a travam
Para a mágica que escondo
(a pomba apertada no peito
que já está morta na manga)
Para o que joguei fora engolindo
Para o sopro que me anima
Para o que já foi e ainda pulsa
Para o que intercepta tuas cartas
E os braços
nos abraços dos pássaros
E o preço do apreço
E o que não vale nunca
E que eu ainda pago
E o peso do que levo
E o que se desfaz nas mãos
Neste frio de fome
Nesta fome de corpo
Onde os dedos não voltam
E as águas não lavam
E esperam
E a fotografia de costas
Sorrindo timidamente
E teu nome
Descalço
Que nestas horas
Reabre o fechado e
corrige tudo.

quinta-feira, 13 de dezembro de 2012

Vou dormir

"O suicídio não é querer morrer,
é querer desaparecer."
Georges Perros


Que amarga queixa o mar ouviu?
Que confissão?
Lágrimas e mar, sal no sal,
na chaga que não cala.
Seu sonho tropeçou, submerso.
Dorme agora,
abraça o abismo claro que também abraça.
Onde guardou sua cicatriz?
Ouvem uma voz vinda das águas?
É naufrágio ou travessia?
Tudo vibra.
Ele vai chamar? Não importa mais.
Deita que a ressaca devolve o poema,
para sempre,
entre duas vidas,
quando não se quer a vida
e abre espaço no mar.
Ainda cheiro essa mesma espuma.
Os pássaros migram, partem,
mas não esquecem Alfonsina,
se entreolham tristes e também veem,
outro sal no mar.

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Na madrugada do dia 25 de outubro de 1938, uma mulher não aguenta mais as dores causadas pelo câncer. A morfina não faz mais efeito e sua depressão lhe ajuda para tomar a decisão: sai da sua pensão em Mar del Plata e se joga desde um espigão para o remédio dos sais marinhos. Alguns afirmam que foi adentrando lentamente, que o alívio veio com as ondas. De manhã, alguns trabalhadores veem surgir um corpo boiando. Ao levá-lo ao hospital, a reconhecem como Alfonsina Storni. Tinha 46 anos.
Naquele lugar, seu corpo, agora talhado na pedra, olha para sempre a maré e pressente as flores que sempre deixam em seus pés.
Alguns dias antes, Alfonsina tinha encaminhado por carta seu poema "Vou dormir", ao jornal "La Nación", que chegou postumamente, como último pedido num bilhete suicida:

Dentes de flores, touca de sereno,
Mãos de ervas, tu, ama-de-leite fina,
Deixa-me prontos os lençóis terrosos
E o edredom de musgos escardeados.
Vou dormir, ama-de-leite minha, deita-me.
Põe-me uma lâmpada à cabeceira;
Uma constelação; a que te agrade;
Todas são boas: a abaixa um pouquinho
Deixa-me sozinha: ouves romper os brotos…
Embala-te um pé celeste desde acima
E um pássaro te traça uns compassos
Para que esqueças… obrigado. Ah, um
encargo:
Se ele chama novamente por telefone
Diz-lhe que não insista, que saí…*


Apenas como curiosidade: tenho o livro
"El dulce daño", 1918, autografado por ela.
Primeira edição. Muito raro.

* O poeta Felix Luna escreveu a letra da música "Alfonsina e o mar", cantada pela primeira vez por Mercedes Sosa em 1969, utilizando parte do poema original de Alfonsina:

Pela branda areia/ Que lambe o mar/ Sua pequena pegada/ Não volta mais/ Um caminho só/ De pena e silêncio chegou/ Até a água profunda/ Um caminho só/ De penas mudas chegou/ Até a espuma. / / Sabe Deus que angústia/ Te acompanhou/ Que dores velhas/ Calaram tua voz/ Para deitar-te/ Sussurrada no canto/ Das conchas marinhas/ A canção que canta/ No fundo escuro do mar/ A concha. // Te vais Alfonsina/ Com tua solidão/ Que poemas novos/ Foste a buscar?/ Uma voz antiga/ De vento e de sal/ Te requebra a alma/ E a está levando/ E te vais até lá/ Dormida, Alfonsina/ Vestida de mar// Cinco sereinhas / Te levarão/ Por caminhos de algas/ E de coral/ E fosforescentes/ Cavalos marinhos farão/ Uma ronda ao teu lado/ E os habitantes/ Da água vão a brincar/ Prontamente a teu lado. // Baixa-me a lâmpada/ Um pouco mais/ Deixa-me que durma/ Ama-de-leite, em paz/ E se ele chama/ Não lhe digas que estou/ Diz-lhe que Alfonsina não volta/ E se ele chama/ Não lhe digas nunca que estou/ Diz que me fui.


(Do meu livro "Suicidas - os modos de falar à parede)


terça-feira, 4 de dezembro de 2012

Cervos

Caminhamos lentamente e em fila, para cruzar o rio. E nadar quando for necessário. A terra ainda é um lar. Um coro de pássaros nos acompanha e sossega nas pontas de cada haste. Não me perguntem como e onde nasceu o costume de apoiar a cabeça e o pescoço nas costas daquele que está na frente. Sei que facilita e o caminho parece mais leve. Mas hoje estou cansado. Já nem falar consigo. Peço desculpas, não aguento muito ser o primeiro. Levei uma mordida e agora estou sentindo. Nós não contamos os anos, apenas vemos se podemos fazer algo ou não. Não sei quantos estão atrás. As correntes estão aumentando e precisamos manter-nos atentos. Parecemos ariscos, mas quem nos ameaça está sempre de prontidão.
Vou dar um sinal e pedir para ser o último. Quem sabe aí eu possa me atrasar um pouco, até as águas ficarem vermelhas...

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