R: Vendo flores na rua, de porta em porta, de carro em carro, no pequeno posto onde trabalho e me entrincheiro.
P:
R: Não, seria como penitência. A intempérie me protege e agasalha. A rua ensolarada substitui a anestesia.
P:
R: Acho que sim. Apenas diria que aqui tudo se vê, que é mais uma forma de sustento. Minto como todo mundo. Não penso no fim do mês, tenho poucas certezas que o desamor me impôs.
P:
R: Não moço, mas se há que ler, eu leio.
P:
R: É que muitos não sabem, mas de cada uma, ajeito as folhas, rego-as com cuidado, coloco um papel platinado como arranjo...
P:
R: Já fiz muito, agora não, aliás, o mínimo necessário. Não temos nada em comum, não me deixaram nada além de alguns beijos esquecidos e fracassos por toda a minha cara. Voltando: quando posso, falo com elas, baixinho. Renovo-as com carícias. No jardim cresce meu pão.
P:
R: Não, já apanhei muito também. Não vai funcionar comigo. Antes chorava por isso, agora apenas grito: Flores! Flores! Perfeitamente ensaiado. De algum modo, sou cada uma delas com o cheiro dos espinhos, quando a gente se cheira.
P:
R: Sim, mas algumas acabam murchando, perdendo seus verdes e vermelhos, caindo suas pétalas com o mesmo silêncio dos doentes. E vão como se vão as flores.
P:
R: Por isso dá pena jogá-las fora, então peço licença e as levo para casa quando meus braços estão vazios. Acomodo todas em vários copos com água morna, onde os ramos parecem sangrar em silêncio no meio da noite, que é quando bebo, e combina com meu aspecto de muitos metros enroscado nas cobertas, com o resto triste e barato do abandono, a mínima luz, as plantas da varanda, olhos de pedra, e eu atrás, encolhida, paredes cegas e o cheiro de funeral das coisas caladas onde parece não haver paisagem, onde restam poucas claridades, além de um sorriso claro. De manhã, pássaros pousam sobre minhas feridas. Eles acreditam que não os vejo antes de dormir. Divertem-se me cercando. Mas, que importam seus murmúrios, enquanto morro? E se Deus fosse uma decepção total? Às vezes penso que a intuição é seu alfabeto. Só não me peçam saber qual é o sentido de tudo isto. Eu deveria ler a Bíblia. Não sei descrever um quarto escuro onde não cabe o céu na janela.
P:
R: Qualquer coisa. Qualquer. Falo de esperança em gavetas separadas.
P:
Em algumas situações gostaria fazer isso, sim. Passar a borracha, apagar algumas partes e redesenhar a vida de uma forma diferente. Por momentos somos apagados pelo que já não conseguimos dizer. Encobertos pelo extraviado. E é com tanta intensidade que não estamos, que nem palavras nos encontram, que do nó da garganta brota sempre a fome ou apenas flores que morrem e que prontamente usarão para decorar nosso silêncio. Não sabemos que fazer do olhar. O que se vê, é o que falta, o que não fala, o que não volta. Não estamos nem detrás da procissão da ausência; e as suas pernas que se arrastam. Nós, que já não estamos: os invisíveis, os esquecidos, os ignorados e errantes... Os que falam com línguas sem céu. Cada dia desaparecemos um pouco, até completar-nos.
P:
R: Pois é... Tento fazer o mesmo com minha vida. Nem sempre consigo. Vez que outra me alcança um desespero. Abro esta porta, mas o inverno nas flores chega por acumulação. Amor e vento (e eu morrendo). Quando acordo todo dia e vejo que sou a mesma de ontem, penso que não é o bastante. Já não sei aonde ir, mas volto a trabalhar cedo para que nada disto se note.
3 comentários:
Lindo. Triste. Lindo. Triste. Triste. Lindo. Sensível. Triste.
Lindo.
Obrigada pelas Flores....
Puro existencialismo: em vez de a essência modelar a existência, é esta que a determina...
Voce observa curioso o mundo e com negligência a explicação que lhe querem dar (opta pela tua... ótimo!)
Penso que seja por isso tão importante a poesia das coisas, porque é no quotidiano que elas se oferecem puras, desarmadas, inocentes de qualquer formalismo ou conspiração explicativa.
Me cativa sua dedicação aos objetos e as pessoas sem importância, nem história, nem graça.
A simplicidade da vida transformada em poema, através da tua sensibilidade...
Um dos que mais gostei...
Obrigado também Cassandra.
Estou hoje na maratona de entrevistas pelo lançamento. Cheguei agora da rádio Mirador. 15:30, ao vivo na Difusora. 16h gravar para o jornal da BA...
Hoje a noite promete...
Beijo.
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