ESCRITOS DO GABRIEL

(Tentar que nossas palavras sejam, através de nós ou, quiçá, apesar de nós.
Meus textos, meus rascunhos com erros... )



"Então, um dia comecei a escrever, sem saber que estava me escravizando para o resto da vida a um senhor nobre, mas impiedoso. Quando Deus nos dá um dom, também dá um chicote – e esse chicote se destina exclusivamente à nossa autoflagelação."

Introdução do livro Música para Camaleões, de Truman Capote.

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

Vicio

Temos um vicio nos sentidos.

Não distinguimos
o invisível,
o frágil e mudo
lado das janelas
que abriga cheiros e cores provisórias
do dia.

De tudo que passa,
apenas o que passa,

fica

sem deixar vestígios.

sexta-feira, 24 de dezembro de 2010

Noite de Natal

O poema anterior era sobre um texto do escritor uruguaio Eduardo Galeano, e este também... É sobre a noite de natal... Para que tentar escrever outra coisa diferente se ele já escreveu tão bem?

O texto é do Livro dos Abraços...


Fernando Silva dirige o hospital de crianças, em Manágua.
Na véspera do Natal, ficou trabalhando até muito tarde. Os foguetes espocavam e os fogos de artifício começavam a iluminar o céu quando Fernando decidiu ir embora. Em casa, esperavam por ele para festejar.
Fez o último percorrido pelas salas, vendo se tudo ficava em ordem, e estava nessa quando sentiu que passos o seguiam. Passos de algodão: virou e descobriu que um dos doentinhos andava atrás dele. Na penumbra, reconheceu-o. Era um menino que estava sozinho. Fernando reconheceu sua cara marcada para a morte e aqueles olhos que pediam desculpas, ou talvez pedissem licença.
Fernando aproximou-se e o menino roçou-o com a mão:
_ Diga para... _ sussurrou o menino. _ Diga para alguém que eu estou aqui.


Um feliz Natal a todos que estão por aqui também...

quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Fogueirinhas

Galeano contou
(e eu acredito)
que um homem conseguiu
subir aos céus
e de lá viu que somos
um mar de fogueirinhas.
Cada uma com sua luz
e não existem duas iguais.
Pequena, grande, de fogo quieto,
lento ou louco. Leves, quase apagam,
mas crescem. Ardem permanentes.
De todas as cores e intensidades.
Gente que nem percebe o vento
ou que enche de faíscas o ar.
Mas que alguns fogos são tolos,
não iluminam nem queimam.
Enquanto outros incendeiam
a vida,
com tanta vontade,
que é quase impossível
(tanto como possível),
olhar sem pestanejar.

domingo, 19 de dezembro de 2010

Sobre a poesia



(de “Salvo el Crepúsculo” de Julio Cortazar)


Julio,
realmente não acreditas
que todo plano para alternar
poemas com prosa é suicida?
Que os poemas exigem
uma atitude, uma concentração
diferente?
Que o leitor será obrigado
a mudar de voltagem
a cada página (e assim
é como se queimam as lâmpadas)?
Pois é Julio,
fiz da tua prosa
minha poesia.
A fonte de luz é a mesma,
apenas ilumina desigual
as sombras.

quinta-feira, 16 de dezembro de 2010

Ela

Ela tenta completar-se
com ele dentro.
Ele apenas despeja seu vazio.
Ela continua incompleta.
Ele expira.
Ela guarda.
Ele esquece.
Ela floresce.
Ele não importa.

Ela aprende
que nem tudo sai
se desaparece.

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Barulho

O barulho caiu sem objeto,
sem mais,
sem quebrar,
sem apontar culpados.

Só ele caiu.

As coisas
ficaram todas no lugar.

Queria apenas ser ouvido,
mas sem estragos.

sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

Paisagem camuflada

Com a voz travada do olhar,
com os primeiros lábios
da palavra que me chamou,
com os pássaros de Van Gogh
menos e mais que os dedos
que enumeram todos
os nomes do dia,
com todos e nenhum,
cemitérios estendidos
onde me sobrevivo,
a boca seca de pedir,
os braços mortos de calar,
um silêncio de morte,
como morrendo, então,
frágil, o peso enorme da viagem,
vago, disperso,
como eu. Auto-retrato sem cores.
O frio tenso, incontável,
que dissimulo por pudor,
o gesto que perdura, incompleto,
um ar feito pedaços,
tanto tato ausente
faz que pareça alheio,
tanto queimando aos poucos,
tanto tanto
e nada.

Assim a paisagem camuflada
que te viu
partir.

quarta-feira, 8 de dezembro de 2010

Origami

Pega o papel e
desfaz este origami
onde a figura era outra.
Alisa,
tenta abrandar as lembranças
das dobras, dos vincos
na sua pele amassada.
Era para voar ou simples
forma decorativa?
Não importa. Aplana bem seu contorno
abre e cura feridas,
pinta algumas cores,
desenha com nova tinta,
segura-o nas tuas mãos
e apaga esta quase nada
como se não fosse
nada
este papel.

segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

"Narrativas afluentes"


O escritor argentino, mas riossulense de coração, Gabriel Gómez ficou surpreso ao folhear as páginas do jornal periódico “Rascunho”, um dos principais veículos de comunicação do segmento literário e que é veiculado nacionalmente.   
Uma das qualidades evidentes de A culpa é do livro de Gabriel Gómez é, sem dúvida, o de privilegiar o ato da leitura como formador ou, em alguma medida, deformador da identidade dos mais diversos leitores que protagonizam suas dez curtas narrativas. Para usar um termo do apresentador da obra trata-se, enfim, de um exemplo magnânimo de ‘livrocentrismo’, em que a erudição bibliófila do autor salta aos olhos...”. Esta é a introdução da crítica produzida pela escritora Maria Célia Martirani, texto que ocupou metade da página 6 da edição de dezembro do jornal.
Ela destaca que “... é uma obra bem inserida no contexto da literatura contemporânea, que elege como central a reflexão de cunho metaliterário, em que o ficcional é matéria-prima de diálogos intertextuais”.
Maria fala também sobre a forte inspiração do autor, onde se evidencia o jogo espectral, onde Jorge Luis Borges norteia boa parte do sumo destes contos. Dois foram destacados pela escritora: “Um clássico”, em que o “protagonista, numa viagem de ônibus, lê concentradamente um livro, quando a seu lado senta-se uma mulher que lhe desperta a curiosidade pelo fato de estar, também ela, lendo em silêncio. [...] Duplos anônimos que se projetam, espelhos que se duplicam, eu e o outro, imagens espectrais de um único ser que, mesmo sendo um só, jamais é único...”. O outro refere-se ao “instigante O bilhete perdido, em que ávido leitor desespera-se à procura de um bilhete que ele mesmo teria escrito e deixado dentro de algum volume, do qual não se recorda.”
Segundo a crítica da autora, em todas as situações, “o livro é o pretexto e o texto ao redor do qual transitam seres embriagados, ao limite do fetiche, por seu cheiro, seu encanto, que quase sempre leva ao desencanto ou – quixotescamente – à loucura.”
O conhecimento literário do autor também é lembrado pelo texto de Maria: “pela vasta erudição de um autor, que quer se fazer conhecer por um pertencimento à clássica tradição dos que assumem como legatários ou interlocutores privilegiados dos grandes nomes da literatura”.
Para o final do texto não faltam elogios referentes ao livro: “Uma obra coerente com o que Borges teria afirmado em certa entrevista, ao mencionar que deixava aos outros que se vangloriassem dos livros que haviam escritos, enquanto a sua glória, diversamente, residiria nos livros que ele havia lido. [...] Culpados ou inocentes, livros, leitores e o universo da leitura de Gabriel Gómez roubam totalmente a cena. Às vezes, porém, de modo tão veemente, que nos fazem perder o foco a singeleza despretensiosa de histórias que narram leves, como águas de riachos, e que, por serem afluentes, nem por isso deixam de ter o brilho dos rios caudalosos e principais.”

(Texto do jornalista Rafael Beling, publicado no Jornal A Cidade.)

quinta-feira, 2 de dezembro de 2010

Os cadáveres não se entregam...

Apaguei e destaquei frases eventuais, tentando reconstruir a historia de uma das páginas do livro “Nunca Mais” (página 241), coordenado pelo escritor Ernesto Sábato, informe da comissão nacional sobre a desaparição de pessoas no regime militar argentino. E assim como esclarece sua introdução: “As Forças Armadas responderam com um terrorismo infinitamente pior que o combatido, porque desde o 24 de março de 1976 contaram com o poderio e a impunidade do Estado absoluto, sequestrando, torturando e assassinando miles de seres humanos...

Detalhe: o texto estava em espanhol... deixei propositadamente a palavra "grabada" (e não gravada) sem tampar, para perceber a tradução.

Leia AQUI o final do meu conto "desaparecido", do livro "Borges e outras ficções", inspirado em fatos reais tirado deste informe.

domingo, 28 de novembro de 2010

Teu nome

Uma lembrança em branco
resiste no teu nome.
Sem memória,
sem letras
nem cores mentirosas.

Chaga efêmera,
céu amordaçado,
boca dentro
do afeto
desaparecido.

E não te acha
porque não procura.
Por ser mais uma palavra
para esquecer,
uma imagem mordida
para unir-se a meus mortos
mais queridos.

sexta-feira, 26 de novembro de 2010

Nunca estivemos além do abraço

Onde a língua fracassa,
há um abraço que dorme
e se multiplica, extraviado,
nos arredores internos do corpo,
no pesar oculto da voz.

Entrelaçado como silêncio que desaba
em braços que não alcançam.
Que pedem ternura
mas não alcançam.

Pássaro descalço.
Reinventa-se contido
com calor ausente do peito, sem a fricção
da afeição. Vazio de rostos,
de apertos, carnal,
incompletos.

Queima, se contrai, arde
calado, cava na carne,
diluído na aquarela da pele
seca de réptil.
Passa uma mão por dentro,
logo outra
e se expande, afunda, forma, deforma,
acorda no meio da noite, soluça
extravios,
mistura-se aos ossos,
morde internas roupas desgarradas,
tato de pontes mutiladas,
estrias do ir e vir as pressas
do exílio de outros braços,
do abandono.

Necessários.

Perdidos.



terça-feira, 23 de novembro de 2010

Prendo, rasgo e solto...

Então peguei as fotos e rasguei
até sangrar
unhas e figuras
que olhavam de dentro,
do fundo, despojos.

Uma, outra e outra vez.
Despedacei todas,
descasquei como
pele defunta,
até me ver partido,
até não ser possível.

O chão
caindo no meu corpo,
mosaico,
tempo,
vida.
Rompi com tanta precisão,
que não deixei dúvidas
que naquela hora,
minha alegria
tinha perdido
novamente
o corpo recém amado,
a cabeça.

Em vão.

Volto a colar tudo
com a mesma fita adesiva da memória.

domingo, 21 de novembro de 2010

Pregos

Os pregos penduram sozinhos seus abandonos.

Parece não haver nada neles.
A parede com ferrugem, ferida,
mostra com furos
a falta de alguns.
Mas suspendem
com pequenas sombras
a lenta luz da manhã.

quinta-feira, 18 de novembro de 2010

Tua escuridão

Por puro excesso aderi a tua escuridão amável
de voar com papeis sujos que o vento carrega,
de querer me alçar onde teu horizonte se afunda.
E afundar-me
como se caísse, como se calasse.

Afaguei o que dorme para sempre,
o que morre de presença, de espera,
que esquece chegar,
indiferente.
Derrubei espelhos
sem ver se tinha gente dentro,
mas resisti com palavras o bocejo,
quando jogava as meias num canto
e me sentia igual a elas.

Assim me ocultei na linguagem, amarrei meus olhos
onde outros se arrastam sem notar.
Falar era dizer menos,
fotografar a respiração.
Mas sobrava eloquência na falta de caricia
e voz para contar.

Queria apenas o fio de luz
que passava por debaixo da porta.
Mas fui claro sem dar tempo às sombras,
à noite,
que falava por gestos,
por querer,
por ninguém.

Apenas lembro,
mas não recordo (que é voltar a passar pelo coração),
que estava podre a água das flores,
que se escrevo é por este cansaço quase intacto,
quase tato,
deste pó que ninguém junta.

Que por puro excesso aderi a tua escuridão amável.

Mas,
são todos novos os fogos que não te iluminam.

E este poema já estava escrito
por outro ardor.

segunda-feira, 15 de novembro de 2010

Perguntas

O que é voar, perguntas,
quando estás distraída?

Amar é ter asas
mas usá-las para ficar?

O que é chorar, perguntas,
pelos ausentes?

Vazios de pele e lágrimas?
Como encontrar o rastro
do que não volta,
daquilo que não sai?

E a vida, o que é
a vida? Quer tudo para si?
E a memória tem o cheiro
das coisas?

O que é uma despedida, perguntas,
quando passas pela porta,
fechada,
sem esperar ouvir as respostas.

sexta-feira, 12 de novembro de 2010

Palavra

Tirei a palavra de cada coisa.
De cada espaço ausente,
sua pequena morte.
Sequei a tinta
na boca antes da escrita,
para finalmente não ler
o que agora escrevo,
o que já esqueci
e se quebra na forma
quando disse.

A palavra é roupa.

Sou desenterrado pela
linguagem.
Escuto meu silêncio
dissolvido na saliva
que cala, geme e sofre
incurável.

O poema me engana.
Acordo sempre
com o gosto de sua voz.

A última palavra será
um olhar.

O que me ignora
não me deixa mentir.

quarta-feira, 10 de novembro de 2010

Onde?

De onde um onde?

De onde pra onde
tua boca deixou a palavra
sem corpo?
De onde não voltas nunca?
Onde a voz apaga a dor?
Onde escondo o som
do que não está?
De que lugar um ponto
se faz rosto que vem a mim?
Que lábio atalho abrir
da porta fechada por fora?
Tantos braços
de abraços me habitam...
Aqui, minha caligrafia
ajusta meu entorno.
E sinto algo
agonizando nas mãos.


A ausência é um fenômeno
de velocidade variável.


Enquanto isso,
tua comida esfria
no prato.

segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Continua comigo

Podes ouvir?

Consegues ouvi-lo na forma de algo?

-

-

-

-

-

-

-

-

Então,

o silêncio que não te dei,
continua comigo.

sábado, 6 de novembro de 2010

Assim apreendemos a linguagem

Não queria ir-me.
Mas
encheu-me os pés
de chão
de partida.
E até empurrou
um verbo
manchado de silêncio.


Caminhei a contrapelo
com um passo vazio
de não sei, quem sabe,
pode ser.

Pássaros fugiram
por temor ao céu.

A escada sempre tem
mais degraus
nessa hora;


e as vozes
mais frases,
folhas mortas
que estacionam fora
de toda fala,
que não ouvi e
que agora leio
do outro lado do olhar.

quinta-feira, 4 de novembro de 2010

Minha poesia

Escrevo fora das margens.

Aqui,
apenas conto.

Como espelhos que não mentem
suas verdades equivocadas.

Um único fósforo para a noite toda.
Meus dentes encravados no silêncio.
Flores de papel.

Eis aqui toda minha poesia.

segunda-feira, 1 de novembro de 2010

Borges e Neruda: Dois tigres

Para muitos, política é um mal absolutamente necessário. Literatura é um bem absolutamente imprescindível. O restante é intermediário. Nesse contexto, o escritor é alguém que dedica seu trabalho para descobrir quem habita no seu interior, traduzindo-o em palavras, que recriam outro mundo e outro novo ser nesse universo paralelo. A valiosa criação que, na tentativa da sua arte, aventura-se a entender a si mesma, consciente e inconsciente, contando suas dores e alegrias como se foram de outros, e as histórias alheias como suas.
Mas, utilizar a escrita para criticar e mudar a realidade, ou para construir sua fantasia?
Em “Neruda por Skármeta”, o escritor chileno Antonio Skármeta (O carteiro e o poeta), cita o poema de Pablo Neruda, “O Tigre”, e propõe uma leitura comparativa com outro clássico tigre literário (e tema constante da sua escrita), o de Borges: “Para ver em seus micromundos como são diferentes esses dois tigres”.
Dois tigres diferenciados por estilo, métrica, realidade, diferenças literárias e políticas que acabaram afastando dois grandes escritores latino-americanos.
Conheceram-se quando jovens e como conta o próprio livro: “... com toda a cortesia fizeram o impossível para não se toparem de novo.”. Trocaram alguma correspondência cordial na primeira época e coincidiam que as opiniões políticas sejam possivelmente o menos importante em um autor. "Creio que as opiniões de um escritor não devem interferir em sua obra. O processo poético é misterioso; temos que deixá-lo por sua própria conta", definia Borges.
Mas a teoria não conseguiu conciliar a prática e,segundo Neruda, a relação não funcionou por Borges ser um anarquista de direita e ele de esquerda. Os dois foram poetas, mas Borges se tornou o grande divisor de águas pelos seus contos e prosas de ficção. Neruda acabou recebendo o prêmio Nobel em outubro de 1971. Borges foi sempre seu eterno candidato.
A ingênua posição política de apoio ao ditador Pinochet, que aproveitou sua ida ao país em 1976, para receber o Doutorado Honoris Causa da Universidade de Chile, e o condecorou com a Ordem ao Mérito Bernardo O’Higgins, possivelmente seja um dos motivos para nunca tê-lo conquistado.
Em outubro de 1979, data da anunciação do Nobel a que ele concorria, e fora outorgado a um desconhecido escritor grego "Odysseus Elytis", Borges respondeu a Sandra Pien, que foi entrevistá-lo: "Não se preocupe, trata-se de uma situação que antes de machucar me diverte. Tenho pena sim dos argentinos, que sentem como se fora a perda de um campeonato de futebol."
E o Nobel ficou sem Borges, como muitos ainda tentam justificar, desculpando a falta deste reconhecimento.
As inclinações políticas do escritor argentino, seus claros-escuros, também foram questionadas por outro grande da literatura latino-americana, o peruano Mario Vargas Llosa: “A tomada de distância com a ditadura militar foi tardia, e não diáfana o bastante para apagar o infortúnio tremendo que causaram, não só em seus inimigos, como também em seus mais entusiastas admiradores (como o que isso escreve), seus longos anos de adesão pública a regimes autoritários e manchados de sangue. Como se explica esta cegueira política e ética em quem, a respeito do peronismo, do nazismo, do marxismo, do nacionalismo, se tinha mostrado tão sensato?”
Conservador confesso, Borges recebeu constantes e pesadas críticas da esquerda por não utilizar seu reconhecimento e prestigio literário mundial, diante dos crimes cometidos pelos governos militares. Sem uma dura posição contrária nem contestadora, parecia, dessa maneira, saudar o fim do tão odiado regime peronista."... um grande número de argentinos está se tornando nazista sem sequer se dar conta", apontou num jornal de Montevidéu. O escritor considerava Perón um protagonista do cruel fascismo latino-americano, manipulador e autoritário.
A importância da obra de Borges é reconhecida na cuidadosa lista de 26 autores que marcaram a literatura mundial de Harold Bloom – "O Cânone Ocidental". O crítico coloca Borges e Neruda entre os fundadores da literatura hispano-americana do século 20.
Vejamos então cada um dos poemas que levam coincidentemente o mesmo título: “O Tigre”.

Primeiro o de Neruda, no livro “Os versos do capitão”:

Sou o tigre.
Te espreito entre as folhas,
vastas como lingotes
de mineral molhado.
O branco rio cresce
na neblina. Chegas.
Desnuda te submerges.
Espero.
De repente num salto
de fogo, sangue, dentes,
num bote exato derrubo
teu peito, teus quadris.
Bebo teu sangue, quebro
teus membros um por um.
E fico então velando
durante anos na selva
teus ossos, tua cinza,
imóvel, longe
do ódio e da cólera,
desarmado em tua morte,
envolto em cipós,
imóvel na chuva,
sentinela implacável
do meu amor assassino.

O Tigre”, de Borges, no livro História da noite:

Ia e vinha, delicado e fatal, repleto de infinita energia, do outro lado das firmes barras e todos nós o olhávamos. Era o tigre dessa manhã, em Palermo, e o tigre do Oriente e o tigre de Blacke e de Hugo e de Shere Khan, e os tigres que foram e que serão e também o tigre arquetípico, já que o indivíduo, em seu caso, é toda a espécie. Pensamos que era sanguinário e belo. Norah, uma menina, disse: “Está feito para o amor”.

O tigre de Neruda faz amor, assassina e bebe sangue. O de Borges é um animal enjaulado, comparado aos de tantos outros escritores. Delicado e fatal, que representa toda a espécie e feito para o amor.
Dois tigres díspares. E se as diferenças já aparecem nos estilos, nos comentários que um fez do outro, são evidentes.
Segundo a revista mexicana Nexos, Neruda escreveu a um amigo o seguinte comentário: “Borges me parece excessivamente preocupado com os problemas da cultura que não me atraem em absoluto, que não são humanos... Ao meu redor sempre vejo menos idéias, sempre mais corpos, luz do sol e suor.” Ou numa outra entrevista no México, em 1974: “Não posso dizer que foi o maior, e tomara que seja cem vezes superado por outros, mas de qualquer maneira ele abriu a brecha, a atenção, a curiosidade intelectual da Europa para nossos países. Isso é tudo que posso dizer. Mas eu brigar com Borges, porque todo o mundo quer me fazer brigar com Borges, não o farei nunca. Ele não entende nada do que se passa no mundo contemporâneo e pensa que eu tampouco entenda. Então, estamos de acordo”.
Já o escritor argentino alfinetava, sobre Neruda: “Ás vezes, foi um excelente poeta, também”. E numa palestra transcrita no jornal “La Opinión” de 1976, Borges definia: “Quando era um poeta sentimental, era muito fraco, quando escreveu Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, era inconsistente. Mas quando se deixou arrastar pelo comunismo, escreveu esplêndidos poemas. Assim, significa que precisava do comunismo como estímulo; não o que eu, leitor, preciso como estímulo.”
E como a disputa fez escola, ainda existem borgeanos e nerudistas e, por conseguinte, um a favor e contra o outro. Separando opiniões, estilos e até a própria literatura. Deixando que as idéias políticas (partidárias) afastem e divida quem faz da arte seu pão. E acabo concordando com a justificativa do escritor argentino Ernesto Sábato: “O romance deve mostrar uma realidade ao leitor, não uma realidade qualquer, mas uma escolhida e estilizada pelo artista, e escolhida e estilizada conforme sua visão de mundo, de modo que sua obra é, de alguma maneira, uma mensagem, significa algo, é uma forma que o artista tem de nos comunicar uma verdade sobre o céu e o inferno, a verdade que percebe e sofre.
Já não se trata de Argentina ou Chile, nem do poema de um ou do outro. O mundo literário, a sensibilidade criativa, não reconhece este minúsculo perímetro.
A busca da identidade sul-americana que une uma literatura insolente, ousada, ávida por ultrapassar sua fronteira, continua fortalecendo-se desde os diferentes pontos do continente. Dois poetas, dois caminhos, a mesma arte. Cada um do seu jeito, num distanciamento que não é crucial, e que ambiciona se recriar constantemente.
Existem inúmeros textos a respeito. Descrevendo exemplos, citando fatos e argumentos. Outros desmentindo e apaziguando o suposto conflito. Aquilo que continua sendo intermediário.Independente dessa pendência, que atravessa épocas e limites literários, extrapolando ideologias e atitudes, pode-se afirmar que dois tigres cumpriram sua transcendente missão:

Um ser Borges; o outro, Neruda.

(do meu livro "Borges e outras ficções")

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