ESCRITOS DO GABRIEL

(Tentar que nossas palavras sejam, através de nós ou, quiçá, apesar de nós.
Meus textos, meus rascunhos com erros... )



"Então, um dia comecei a escrever, sem saber que estava me escravizando para o resto da vida a um senhor nobre, mas impiedoso. Quando Deus nos dá um dom, também dá um chicote – e esse chicote se destina exclusivamente à nossa autoflagelação."

Introdução do livro Música para Camaleões, de Truman Capote.

sexta-feira, 23 de março de 2012

De que falam os que falam sozinhos pela rua?

Quem fala sozinho/ espera falar com Deus um dia
Antonio Machado


De que falam os que falam sozinhos pela rua?* Com quem discutem, passeiam, ensaiam respostas? De que riem em alto e bom silêncio? Aonde vão os que não têm lugar? De onde voltam? (Lembro daquele bumerangue que não voltou porque encontrou Deus...). Resistindo, contrastando, cheios de ar, mas em pedaços.
Que desabafo morreu de angústia? E aspirou vida. Que monólogo acompanha o céu? (Que se nubla se tocado). Para onde olham rasgando paisagens? Enquanto a fome canta, desafinada...
Para onde não vão os que falam sozinhos na rua? Por onde passam? Detidos. Onde pára sua fala? Que passa. Quem cumprimenta calado, de muda testemunha, e junta entulhos de presença? Qual o limite? Que cruzam como uma rua ou um rio de água triste, de fumaça molhada, deserta. Parecem caminhar longe, porque longe tudo é mais leve.
Quem o alheio interlocutor que não aparece?  Que platéia imaginária e muda responde ocupado? Respiram. Extasiados, distraídos, quase sem necessidade de voar; isso que os pássaros dizem escrever. Guardam secretos, falsos souvenires dos lugares, nos bolsos da calça. E lhes colocam nomes, para logo esquecê-los, nos mais remotos destinos. Sabem que é para isso que servem os segredos. Beijam cachorros de rua, que não latem nem mordem, de andares sem rumo, desorientados. E também falam com eles. Brincam com o silêncio, o nada e um pingo de morte cheio de vida. Inventam que não sentem dor. Descrevendo, insistindo com os inúmeros seres que os rodeiam e não sabemos, mas não se distraem.
Para quem os gestos e as palavras? Que desabam, repelem e abrem janelas? Talvez falem para todos (pensam em voz alta), o que todos apenas confessam em voz baixa.
Que ausência apontam seus dedos? O que justificam e não revelam? Anotam, oralmente, cartas nunca escritas, mandadas vagamente, com a vontade secreta de jamais serem lidas. Para quem a música assobiada, que ilumina silêncios de ternura apodrecida? Que faz ouvir sua própria fala? Que parece orar, de mãos juntas, insuficiente, precária; com olhos que não enxergam, porque também falam... E contam mais do que dizem.
Caminham sem pressa, ou param, já que tudo nunca chega, ou chega tarde a lugar nenhum. Nada é tão nosso, quanto deles o desejo por falar; ainda que a rua cale ou libere o que sentem. E encontram muito em muito pouco; provocam movimento, flutuam devagarzinho como silêncios que nos pegam no meio da fala.
Não abrem portas, apenas passam sua presença por debaixo delas, e olham pacientes pelo olho da fechadura, esperando. O espelho quebrado reflete a voz, mas não recolhe seu rosto; não serve para se olhar, apenas para enxergar quanto deles somos; quanto deles temos.
Enquanto nós falamos com máquinas que não funcionam, com plantas que crescem e os espelhos dos elevadores, eles falam sozinhos...
Como então encontrá-los sem nos perder primeiro? De que não falam os que não falam sozinhos? Por que não falam? Talvez os que falam se perguntassem. E por isso falam. Sozinhos pela rua.

– Está falando comigo?
– (...)
– Não. Desculpe.


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* Um curioso estudo publicado sobre diversos casos, identificou alguns tipos:
Aquele que não fala completamente sozinho, já que o faz com seus animais de estimação, que passam a compreendê-lo melhor que ele mesmo. Alguns com idioma próprio que, aparentemente, apenas eles conhecem.
O segundo caso parece com o primeiro, mas este fala com rádios e TVs, contestando argumentos e opiniões. Podem chegar a rir, ameaçar e até insultar. A falta de resposta dos aparelhos parece enfurecê-los ainda mais.
O seguinte é um monologuista agudo. Efetivamente, está acompanhado de um interlocutor, mas este não consegue responder nem intervir nunca, apenas ouvir. Na sua fala, logra não deixar pausas e silêncios, controlando até sua respiração, e assim ninguém conseguir interferir.
O seguinte tipo fala incansavelmente para si, a suposta resposta que deveria ter dito no dialogo que acabou faz tempo. Ele consegue retrucar, fazer que a mesma palavra tenha diferentes tons e ensaia até gestos, caras e bocas para finalmente dizer agora o quê, de forma arrependida, não disse antes. (Existe uma variante neste tipo: aquele que pratica antes todas as formas da fala daquilo que irá dizer, mas dificilmente consegue que seja igual).
O último caso podemos ver tradicionalmente falando sozinho com todos seus invisíveis interlocutores. Além disto, existe uma pequena porcentagem que também interage com outras pessoas, tentando dar a entender aos incrédulos que eles também podem participar.
Em todos os casos se recomenda calma. Eles não são muito diferentes de todos nós.

quinta-feira, 15 de março de 2012

Um clássico

Certamente, o livro que eu estava lendo – um clássico da literatura – deve ter sido o responsável daquele curioso encontro.
Não caminhei, como sempre, com a finalidade de encontrar o melhor e mais afastado refúgio do parque para sentar e ler. Preferi pegar um ônibus com um destino qualquer e, de tanto em tanto, olhar a nova paisagem se abrindo como um filme novo. Na volta seria o mesmo, e talvez conseguisse fazer essa contemplação pela janela por mais tempo, já que esperava terminar minha leitura até lá.
Não sei por quê, mas gosto de ler nas viagens. Enquanto alguns mal conseguem disfarçar a ansiedade para que o momento passe, eu me perco de tal modo nas histórias que meus livros contam, que a surpresa de não saber para onde estou indo se incorpora, de forma cúmplice e misteriosa, nas páginas de cada obra. Levo sempre meu jornal para cobrir sua capa e evitar exibir o que estou lendo. Curiosos existem em toda parte.
Mal podia imaginar que o cenário da minha leitura não iria acontecer fora do ônibus. Em uma das incontáveis paradas e momentos em que rapidamente levantei a cabeça, fazendo uma pausa na minha leitura, acabei avistando aquela mulher adentrar o ônibus. Ela se sentou no lugar que o homem de bigode exagerado, sobretudo preto, cheirando forte a cigarro e álcool, tinha deixado duas paradas antes. No começo, não pensei nada. Só percebi que alguém tinha saído e outro alguém tinha sentado ao meu lado. Só isso.
O percurso do ônibus, que eu não conhecia, me pareceu pouco prático para minha leitura. As curvas eram seguidas, os buracos constantes e as paradas contínuas. Deixei de ler para recuperar um pouco minha atenção. Lembro perfeitamente que eu estava vestindo uma daquelas confortáveis roupas de fim de semana, não muito preocupado com minha aparência. Nem a barba tinha feito. Se soubesse o que iria acontecer, teria tido um pouco mais de cuidado.
Admirei a paisagem das ruas e casas com muitas árvores de cedro e passei meus olhos ligeiramente por quem estava a meu lado. Foi quando percebi que ela também estava lendo.
Com uma estudada curiosidade, simulei estar observando qualquer outra coisa e olhei de lado, para arriscar enxergar qual era o livro. Seu autor, o título, ou ao menos que tipo de leitura era. Qualquer coisa. Justamente eu, que não gostava de mostrar ostensivamente a capa do meu, peguei-me com algum constrangimento fazendo o mesmo. Não enxerguei nada. Mas me pareceu que ela tinha descoberto minha invasora curiosidade literária e fiquei sem jeito.
– Gosta de autores clássicos? – perguntou, como se percebesse meu inexplicável e repentino interesse por sua leitura.
– Sim. Justamente o livro que estou tentando terminar de ler agora é considerado um dos melhores clássicos, ainda que monótono para quem não está acostumado – respondi, surpreso pela abordagem.
– Pois que coincidência, – disse, fechando o livro – eu também acho um pouco cansativo e até, às vezes, me pergunto: por que não ler aquilo que nos faça entender melhor nosso tempo? Mas todo clássico parece nunca esgotar aquilo que tem para dizer, não é mesmo?
Consenti com a cabeça e esbocei um sorriso. Com essa simples colocação, percebi que era uma leitora de respeito, que sabia daquilo que estava falando. Sempre fui leitor dos clássicos sem entender muito o porquê. Imagino que são livros que “devem” ser conhecidos de todos porque, supõe-se, carregam alguma espécie de conhecimento “obrigatório” para a compreensão da cultura ou, simplesmente, para a formação humanista. Ou como dizia Calvino, toda releitura de um clássico é uma leitura de descoberta como a primeira. Toda primeira leitura de um clássico é na realidade uma releitura.
Pareceu-me também que ela tivesse gostado de mim ou, pelo menos, do meu livro, do meu gosto pelos clássicos. Por que escolheria justamente estar a meu lado, havendo tantos assentos? Por que falar comigo? – pensei, procurando alguma tonta justificativa.
Queria contar-lhe também que tenho inúmeros livros que, se eu tivesse mais vidas para viver, certamente os voltaria a ler, mas infelizmente os dias que me restam não são tantos assim. Que não gosto desta geração cujos hábitos de leitura se resumem apenas ao consumo de textos facilmente digeríveis, oferecidos em boa parte pela internet, essa infindável cadeia de fast-food do conhecimento! Mas achei meu comentário tolo e inoportuno, ante alguém que recém-conhecia.
O ônibus parecia não ter parado mais; não subia nem descia mais ninguém. Não fazia mais curvas, não entrava mais em buraco nenhum. Ainda que desconhecendo seu trajeto, me pareceu ter mudado radicalmente o seu caminho. Decerto era a distração que ela estava me causando. A paisagem lá fora passava despercebida.
Esperei sem saber o quê. Uma nova pergunta, uma nova abordagem literária ou alguma outra palavra sobre outro assunto qualquer. Afinal, ela praticamente tinha me provocado. Mas não falou nada. De repente, ficou calada como se nunca tivesse falado comigo. Fiquei nervoso e ansioso por querer continuar conversando. Olhei pela primeira vez diretamente para ela e o livro que segurava com tanto zelo, procurando algum gesto, algum aceno que pudesse servir para alguma palavra. Não encontrei nada, também. Sentia-me apreensivo. O que poderia esperar daquela situação?
O ônibus parecia andar mais rápido ou era eu que não queria chegar nunca ao meu destino?
Por que estaria tão preocupado, e revelando toda minha fragilidade emocional, a ponto de começar nitidamente a suar? Comecei a me sentir culpado por tudo: pelo que até aquela hora não tinha feito, não tinha visto nem ouvido. Por seguir as regras do meu jogo, minhas portas fechadas, minha autoabsolvição.
Meu velho medo de falar e o abandono para tirar o pó dos cantos da minha alma. As palavras que não disse a tempo e o significado das que ainda não tinha descoberto. Pelas preocupações que nunca se realizaram, pelos encontros a que cheguei tarde e aos que não fui para não encontrar a mulher dos sonhos. O cachimbo da paz, a terra prometida, o vento que seca meu travesseiro e o eterno brinde para o amanhã que será melhor. A compreensão detalhada das frases de um livro e a raiva por não entender ou decifrar os olhos com que ela me olhou. O importante sempre foi não abdicar da minha vida, mas viver intensamente e ver como os livros se encaixavam nela. Nem sempre deu certo, ao dar a eles a prioridade errada.
Meu desespero foi maior quando pensei que a qualquer momento poderia descer e não encontrá-la nunca mais. Não sabia o porquê. Talvez fosse inimaginável para mim a possibilidade de achar alguém que gostasse da leitura de clássicos na mesma viagem, sentada a meu lado e ainda puxando conversa. Não temos condições de ‘conhecer’ tantas pessoas, com tanta intimidade; porque precisamos nos conhecer melhor, ler melhor, buscando empatia com a vida.
– Humm, falamos de autores clássicos, de algumas páginas monótonas e sobre aquilo que um livro carrega consigo, mas ainda não sei qual é o livro que está lendo – custei a falar com uma certa coragem, esperando alguma reação.
Não sei se o barulho que vinha de fora, aliado às buzinadas do ônibus contribuíram para tampar minha tímida e gaguejante voz, mas ela continuou calada, como se eu não tivesse perguntado absolutamente nada.
Fiquei quieto, sem saber mais uma vez o que fazer. Pensei em repetir meu questionamento, mas desiludido, imaginei ser em vão.
Repentinamente, aconteceu aquilo que mais temia. Lentamente se levantou, sem olhar na minha direção, e sem se despedir com qualquer palavra. Caminhou até a saída e desceu do ônibus. Quando olhei seu assento, percebi que tinha esquecido ou deixado, quem sabe propositadamente, seu livro.
Abri prontamente a janela para avisar, mas o ônibus partiu, sem me dar tempo para nada. Pensei em descer, correr e devolver o livro, ou até mesmo em utilizá-lo como pretexto para algum futuro encontro. Logo me conformei em ficar com ele, ao menos como lembrança. Teria entre suas páginas algum pertence particular, seu nome em algum bilhete indiscreto ou um simples e despretensioso marcador?
Apanhei o livro e olhei-o com curiosidade para finalmente saber seu título. Constatei ser o mesmo que eu estava lendo. Mais confuso fiquei, quando não vi onde estava o meu.
Procurei embaixo do jornal e do assento, ao meu lado, e nada. Parei por um momento para refletir se ela realmente existiu ou foi só no coração do próprio acaso.
Quando o ônibus chegou ao seu destino final, já era noite. Desci, mas já não sabia se era um livro que apertava contra o peito.

sexta-feira, 9 de março de 2012

Esses fantásticos livros voadores



Publico a versão integral do curta de animação que ganhou o Oscar: The fantastic flying books of Mr. Morris Lessmore (Os fantásticos livros voadores do Sr. Morris Lessmore), explícita declaração de amor aos livros.
Vamos voar juntos...

segunda-feira, 5 de março de 2012

O jogo em que andamos

Um poema de Juan Gelman que possivelmente faça parte da introdução do meu próximo livro... 

Se me dessem a escolher, escolheria
esta saúde de saber que estamos doentes,
esta felicidade de andarmos tão infelizes.
Se me dessem a escolher, escolheria
esta inocência de não ser um inocente,
esta pureza em que passo por impuro.
Se me dessem a escolher, escolheria
este amor com que odeio,
esta esperança que come pães desesperados.
Aqui acontece, senhores,
que eu jogo com a morte.

Juan Gelman, O jogo em que andamos.

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