ESCRITOS DO GABRIEL

(Tentar que nossas palavras sejam, através de nós ou, quiçá, apesar de nós.
Meus textos, meus rascunhos com erros... )



"Então, um dia comecei a escrever, sem saber que estava me escravizando para o resto da vida a um senhor nobre, mas impiedoso. Quando Deus nos dá um dom, também dá um chicote – e esse chicote se destina exclusivamente à nossa autoflagelação."

Introdução do livro Música para Camaleões, de Truman Capote.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

Verdade e Mentira (versão completa)

O livro da mentira tem muitas páginas. Enquanto existe uma verdade, parece haver infinitas argumentações contrárias. E não precisa ser oposta. Um milímetro fora, já é outra coisa qualquer, deturpada, inexata. (Que dizer então quando se apresentam entrelaçadas?) Seu universo é muito mais amplo, espaçoso. E neste ambiente, tudo é provável. Onde a verdade é gasta, obsessiva, a mentira se derrama aberta, caudalosa de brilho alheio. E o que parece pior: enquanto uma dói, a outra se apresenta como piedosa, fácil e suave ao paladar. Uma não tem preço, a outra se vende, cede constantemente e estuda-se como arte. Dois lados do mesmo rosto; um verossímil, outro inacreditável. Mentir para não magoar; o sabor amargo da verdade e a doce mentira engolida, que lambe, consola. Juntas, uma coalha a outra, abarrotando limites, perdendo sabores e princípios. E não contrastam. A mentira é lubrificada, a verdade é a seco.
O escritor Alejandro Dolina disse ter, no bairro portenho de Flores, dois livros mágicos: um é o livro da verdade; o outro, da mentira. O incrível desta história é que, enquanto o primeiro contém todo tipo de noção exata, revelações únicas da origem do mundo, as fórmulas da arte, até o complexo processo do amor, e o segundo só consigna falsidades, dados corrompidos, levando ao erro quem, porventura, possa e queira consultá-lo; existe um detalhe sinistro nos dois: o livro da mentira é falso até mesmo no seu título, e passa pelo livro da verdade.
Os desafortunados leitores acreditam ter consultado o outro livro. Assim, não há quem pense que suais ideias são oriundas do volume oposto...

Um deles apresenta a seguinte hipótese: “Tanto uma como outra se alimentam do adverso. Tudo é dualidade, tudo tem dois polos, seu oposto; os semelhantes parecem e os antagônicos são a mesma coisa; os opostos são idênticos em natureza, porem diferentes em grau; os extremos se tocam, todas as verdades são semi-verdades, todos os paradoxos podem reconciliar-se. Qualquer sentimento que se origine na negação de outro acaba contendo parte daquilo que acabamos renegando.”
Até quando explica o fundamento do embuste, como, por exemplo, esta hipótese, não sabemos se está novamente mentindo. Praticamente, tudo pode ser refutado.
A foto da verdade ainda não foi tirada. “Minto para que a verdade possa ser entendida. A mentira me engana, a verdade se transforma. E a mentira foi certa... Todos mentem, e ironicamente, todos acreditam ser sinceros, apenas colocamos nomes diferentes. O difícil mesmo é mentir com franqueza, como agora.”, disse um desavisado interlocutor, que acreditando ter lido o volume certo, tenta contribuir para tornar inefável sua compreensão.
Uma outra teoria exposta, mas de difícil comprovação, afirma que a escassos segundos antes de qualquer pessoa morrer, escuta certa melodia; diferente no seu tom e musicalidade para o bom e para o mau, mas igualmente fatal para ambos. Por motivo óbvio, ninguém consegue afirmar nem refutar a informação, independente do livro onde ela estiver.
O número de páginas é essencial, para descobrir, qual seria o suposto verdadeiro volume. Enquanto um permanece imutável, estável e firme, o outro sofre constantes alterações, acréscimos necessários. Precisa se renovar, ampliar, fingir, para não ser finalmente descoberto.
Tudo deve. A mentira não tem paz. Para os mais otimistas, ela é a simples recreação da realidade, uma verdade aparente. A linha que separa as duas parece tênue, mas é na verdade uma divisa perturbadora, arrancada, confusa.
Quanto, e quão intensamente, de cada uma, somos capazes de suportar? Quantas delas necessárias ao dia? De quantas mentiras se necessitam para a verdade ser compreendida?
Dolina também aponta a possibilidade de uma literatura que nasce das ruínas. Ou seja, nada foi perdido, tudo foi escrito assim, propositalmente, com parágrafos faltantes e mentindo na argumentação de perda de palavras, capítulos, que nunca foram escritos.
O final da sua teoria, e desta, como não poderia ser diferente, também se perdeu.

5 comentários:

Cassandra disse...

"...Dois lados do mesmo rosto; um verossímil, outro inacreditável. Mentir para não magoar; o sabor amargo da verdade e a doce mentira engolida, que lambe, consola. Juntas, uma coalha a outra, abarrotando limites, perdendo sabores e princípios...o livro da mentira é falso até mesmo no seu título, e passa pelo livro da verdade..."
Pura ilusão! Afinal, não somos pura ilusão? Não vivemos uma ilusão? Então... é verdade... ?!
Beijo.

Anônimo disse...

Poesia ou prosa,
teu texto tem poesia...
É verdade,
mesmo que ela,
a verdadeira,
nunca apareça
na totalidade.

Rafael Castellar das Neves disse...

Um texto direto, mas carregado de sentimentos e sensações...muito bom isso, Gabriel!

[]s

Gabriel Gómez disse...

Cassandra e Rafael... Agora coloquei o texto completo...
Agradeço seus comentários (é verdade)
Abraços.

Cassandra disse...

Nietzsche disse que "se nos é permitido desejar, quando não podemos saber, então desejo de coracão que se de precisamente o oposto".
Penso que o desejo (força criativa cega, inconsciente) é instável e que muda o tempo todo e a vontade (a única força criativa inteligente) possui característica firme, constante.
Desejo... vontade...
Mentira... verdade...
Os opostos complementam-se com objetivo harmônico. Na harmonia, formam um todo. Final. Utópico...
E assim vamos seguindo, nesta terra de sonhos e ficção...a nossa terra da Verdade!
Este teu livro é muuuito bom (e, acredite, peguei ele para re-ler, na segunda feira...)
Beijos.

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