“Liberdade completa ninguém desfruta, mas, nos estreitos
limites a que nos coagem a gramática e a lei, ainda podemos
nos mexer”.
Graciliano Ramos
Odeio emprestar livros. Gosto de tê-los comigo, de relê-los se quiser, de tocá-los e sentir o cheiro da sua presença. Saber que eles estão aguardando, que já foram lidos e ainda esperam renovados a cada leitura. Mas como nunca consegui não emprestá-los, fiquei sem alguns e acabei perdendo não só o livro como a memória das pessoas a quem o emprestei.
Pensei fazer igual ao tempo dos antigos e valiosos manuscritos, onde era costume escrever pragas nos livros, amaldiçoando quem os furtasse. Cheguei até copiar um texto daquela época para colocá-lo em qualquer página e quando menos o leitor esperasse, dar de cara com a mensagem:
“A quem furtar um livro da minha biblioteca, que se transforme em uma serpente suas mãos e o subjugue, que seja atacado por paralisia e todos os seus membros sejam amaldiçoados. Que agonize em dor, gritando perdão. Que não haja descanso para sua agonia, até que se afunde na dissolução. Que os vermes de livros roam suas entranhas...”.
Mas ninguém precisou agonizar, ser atacado ou roído pelo remorso. Muito menos pedir perdão por isso. Entendi que, ao longo do tempo, nossa memória vai formando uma biblioteca díspar, feita de livros, lembranças ou de páginas soltas, e tal vez em essas páginas esteja já o essencial, e cuja leitura foi uma felicidade e que gostaríamos inconscientemente de compartilhar. Classificar minha biblioteca foi uma maneira silenciosa de exercer o artifício do meu julgamento e, com ele, poder dividir meus gostos.
Comecei emprestando aqueles sem os quais eu poderia viver. Mas a dor foi de flagelo. Essa norma foi logo substituída por outra que descobri com a perda: só empresto o que puder presentear. Mesmo sabendo que ainda que comprando muitos outros, não serão nunca como esses. Que é um livro, se não o abrimos? Eles guardam parte de nós e merecem nosso cuidado. Um único livro ameaçado ocasiona uma perigosa perda na biblioteca universal. Eles eternizam nossa memória. Por isso acredito estar cercado de belas metáforas.
Talvez cada um de nós seja uma mera letra no complexo texto cifrado do universo. De fato deixei de emprestar livros, agora só os dou. E foi isso o que fiz quando soube da idéia de fazer uma biblioteca no presídio municipal.
Uma pesquisa da Universidade local tinha levantado que a leitura estava sendo feita só no pavilhão dos ‘isolados’, onde ficam os presos que, por uma razão ou outra, não podem deixar suas celas. Lá circulam, num caixote, velhos livros emprestados uma vez por semana, uma iniciativa que poderia estimular a todos agora, com a campanha de arrecadação. Ela coincidiu com o final da faxina na minha biblioteca e com a vontade de pôr ordem no caos literário de anos. Sem ordem, uma biblioteca seria um simples depósito de livros. Um caos no qual, às vezes, podemos suspeitar que exista uma outra ordem. Cada livro revelado ao lado de outro, e este, ao lado de um terceiro, ramificando-se pelas prateleiras, ganha vida própria, multiplicando-se entre estantes e corredores, procurando a biblioteca ideal, completa, inconcebível. Quando a vida cai, o mundo se desvanece e a biblioteca, iluminada por suas vozes, vira meu paraíso. Livros abrem portas, entortam vigas e podem levar à liberdade absoluta. Na biblioteca descobri minha tábua de salvação, meu antídoto, minha lâmpada dos pedidos e desejos. Uma ilha, na qual ancorei. Uma ilha chamada livro, à qual gostaria que chegassem as respostas escondidas, quando tudo o que ela consegue fazer é me trazer mais desejos. Livros me sacodem, mordem e me ferem como a mais dolorosa das desgraças, e me recuperam com o remédio diluído na tinta preta impressa no papel. No acúmulo e no desprendimento, achei minha companhia e meu consolo.
Entre os que primeiramente separei, fiz uma melhor seleção com aqueles que se encaixariam no perfil do suposto novo leitor. Fiquei realmente feliz ao descobrir livros de cuja existência não lembrava e que, todavia, se revelam extremamente importantes para mim. Na verdade, minha preocupação tinha mudado, querendo encontrar alguns, tentando adivinhar gostos e preferência de quem pudesse lê-los.
A classificação aumentava e diminuía, descartava ou incluía e comecei a perceber que justamente aqueles que não tinham entrado na lista eram os que melhor ou mais facilmente seriam assimilados por eles. Mas afinal, a limpeza ou a escolha? Tentei ser imparcial e depois liguei para que alguém passasse a recolher minha doação.
Naquela mesma tarde um detento, daqueles que passam só a noite na prisão, veio em casa. Timidamente subiu a escadaria em caracol, à esquerda da entrada que leva até uma galeria com um pequeno piso de madeira que dá para a sala de leitura com estantes de livros alinhadas. Algumas delas apanhando poeira.
– Sua biblioteca parece ser enorme. Sua casa toda parece ser uma biblioteca... – falou notadamente surpreso, enquanto o imaginei olhando de cima para baixo a distribuição das prateleiras.
– Agora que está um pouco mais em ordem, assusta menos – respondi em tom de exagero – Tem que ver na confusão como parece um labirinto feito de colunas de volumes empilhados querendo engolir leitores... Muitas vezes me perdi em meio a velhos tomos de edições esgotadas, gravuras do século passado e enciclopédias as quais eu cheguei a ler como a um livro desde a letra “A”.
– O senhor parece feliz e empolgado quando fala dela...
– Quem conhece a biblioteca, conhece diversas felicidades, meu jovem...
Acredito que tenha ficado surpreso diante dos espelhos que propositalmente duplicavam as prateleiras até o infinito, e que agora cercam o mundo real de sombras e luzes a que estou acostumado. Quanto mais eu falava, mais ele parecia extasiado, demonstrando-me sua admiração por cada detalhe da sua estrutura. Ela possui em si a potencialidade do mágico. Em algum lugar dessa fabulosa arquitetura, existe uma porção diabolicamente divina ou uma chave que abre a porta do prazer desconhecido. E ele agora parecia estar descobrindo esse feitiço em cada passo que dava. Aqueles que eu já tinha escolhido estavam separados. Na realidade não sabia quantos eram exatamente, nem o título de todos. E foi justamente isso o que ele acabou perguntando:
– Sua doação parece ser a maior até agora. Quantos livros o senhor está doando?
– Na verdade não sei. Comecei a selecioná-los e não contei quantos...
– E no total, o senhor sabe quantos livros tem?
Poderia ter arriscado qualquer número parecido a cinco mil que a pergunta estaria respondida sem questionamentos, mas preferi não revelar nenhum número e responder que só quando terminasse minha arrumação poderia saber com exatidão.
– O senhor realmente quer doá-los? Não irá sentir falta?
– Possivelmente, mas é preciso decidir se queremos proteger e exibir os livros ou dá-los a ler. Ainda que não saibamos, sempre estamos voltando a ler o mesmo. Faço questão de dar aqueles que possivelmente tenho duplicados ou que agora possam ser mais úteis aos outros que a mim.
Poderia também ter argumentado que cada geração escreve o mesmo texto, conta o mesmo conto, publica em definitivo o mesmo livro. Com uma pequena diferença de voz, modulação ou acento gramatical... Que em todos meus anos de leitura, não concordei com muitos deles, embora sempre tenha percebido algo de sagrado e imortal na sua composição; mas preferi guardar algumas justificativas para mim mesmo.
No tempo que passou visitando os corredores, e enquanto conversávamos sobre minha doação, ele concordou em me ajudar a preencher um formulário com alguns dados, que depois assinei. Não consegui fingir. Confessei que preferiria contribuir dessa maneira, dá-los de presente a ter que emprestá-los e nunca mais vê-los. Que ficaria aflito sabendo que o livro que deveria andar de mãos em mãos continuava parado sobre as mesas ou nas prateleiras, impossibilitado de passar sua mensagem. Morrendo seu autor, a obra, o leitor e minha biblioteca. Ele contou que tinha aprendido a gostar de ler quando teve que cumprir sua pena de forma integral na cela.
– Imagino então que deverá ter outros cômodos, outras áreas cheias de livros....
– Não... Minha biblioteca está na sua frente, grande o suficiente como você pode ver. Os outros cômodos são apenas de leitura...
– Me pareceu ver uma prateleira com só um livro na parte de cima...
– Sim... Ela não é casual. Está com aquele livro que definitivamente não quis saber nada comigo. Sua leitura, seu entendimento e prazer me foram negados. Ele não me ama como leitor, não me escolheu para decifrá-lo e deve ser por isso que nunca consegui passar das primeiras páginas. E como a leitura é uma forma de felicidade, não me esforcei e acabei abandonando-o lá encima. Quem sabe se em outro tempo, quando ele consiga transformar-nos, não alcancemos essa revelação...?
– (...) Bom, agradeço e reconheço sua atitude e desprendimento. Eles serão muito bem aproveitados.
Quando apertou minha mão na despedida, percebi que estava tenso, algo preocupado. Assim que terminou de carregar, fez sua última pergunta:
– Por que fez questão de doar todos seus últimos livros, de ficar só com aquele único perdido na estante?
Fechei com calma a porta, respondendo sua dúvida com um sorriso. Para meus olhos cegos, aqueles livros agora estavam em branco. De todas as coisas que me aconteceram, a menos importante foi a cegueira. Embora seja rodeado por infinitas sombras de prateleiras e o eco de antigas leituras, estou condenado a viver no centro do seu labirinto. Que outra bela sorte me resta? Só aquilo que se foi é o que nos pertence.
Continuo sendo em silêncio a soma do que li e perdi e que ainda guardo como revelação.
5 comentários:
Boa noite!!!
É... a culpa é do livro...
Talvez o trecho deste conto repleto de imaginação, como o aqui publicado em Outubro/2009, não transporte o leitor a esse mundo tão particular.
Desta vez, voce transmite o "recado" completo, demostrando que as palavras bem lidas tem um poder especial para tornar a vida repleta de alegría.
Em uma biblioteca (não importa o tamanho) acredito estarmos em um mundo de encantado, com mais perguntas que respostas, ilusões que realidades, encontros que desencontros...
"Livros me sacodem, mordem e me ferem como a mais dolorosa das desgraças, e me recuperam com o remédio diluído na tinta preta impressa no papel."...
Como não proteger, cuidar, guardar???
Beijo, senão amanheço.....
Bom dia Cassandra:
Tirando a poeira de algum texto já publicado... (e que ainda gosto, mesmo querendo mudar alguma que outra coisa...).
O novo está na revisão, fresquinho e esperando... esperando, decantando, e ver se depois deste processo, de eliminar a borra, sobre algo que preste...
Beijo!
Não é fácil...tenho ciúmes dos meus livros, muito...mas se soubesse que os que me foram levados serviram, ficaria contente...rs
Devia ter usado esta sua frase "amaldiçoadora"..rsrs
[]ss
Oi Rafael...
O pior que a suposta frase "amaldiçoadora" existe, não é minha... Era utilizada antigamente para esse fim...
Veja, pois...
Abraço e obrigado.
Revisão?
Graaande notícia! Uhuuu!!!
(sobre a sobra de algo que preste, não comento....)
Beijos.
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