Experimentou diversos céus. Alguns claros, vivos, estrelados, com transparências finas de um azul admirável dentro do azul, intenso, eloquente. Outros vespertinos. Mas as velas na aba do chapéu de palha eram poucas para enxergá-lo, evocá-lo em cativeiro não alcançava. Colocou a culpa na tinta, no pincel, nos últimos tubos, na sua fome, um quadro por dia, na imperícia como artista. Naqueles corvos sobre o campo.
Com um brilho sedento então pintou a imóvel tristeza do seu rosto. Seu espelho parecia cristalizar, minucioso, cada detalhe de cada ruga que recém agora percebia por inteiro. Era amarelo, mesmo não conseguindo pintá-lo como realmente o distinguia. Não queria exprimir nada além disso, as vibrações misteriosas dos tons aproximados... Amarelo sol, trigo espesso, frutos amadurecendo, e outros quase sem cor. Começou com um entusiasmo que o fez não sentir o passar do tempo, sofrendo de prazer e ardor, se mexendo pouco, comendo alguma coisa por perto.
O rosto e os cabelos amarelos de cromo 1, a roupa amarela de cromo 2, a gravata amarela de cromo 3, num fundo amarelo de cromo 4. Amarelo primário, atormentado, cor-luz secundária, girassol, vaso com três, cinco, doze, quinze grandes girassóis amarelos, cadeira de palha, cachimbo, movimento circular em campo de trigais, a casa amarela, a cama amarela, a noite estrelada, telhados de palha muscosa, natureza morta com absinto verde-amarelo, seu quarto, a janela entreaberta, quadros que pendem, móveis em diagonal, calor intenso, jardim ensolarado, pontes, enxofre pálido, amarelo-surdo, ferruginosos de ocre, terra lavrada, xantopsia.
Na sala vazia, o violeta e o azul. Os últimos tubos na última tela, o peso de todas as cores.
Apenas lhe restavam forças para escrever mais uma carta a seu irmão.
- Sou eu mesmo – definiu – enlouquecido.
O vermelho era da sua orelha cortada, rasgada de raiva, intimidante inanimada, que demorou a estancar pela hemorragia. - Era a esquerda ou a direita? Perguntou-se frente ao espelho. O sangue sujou o caminho da escada que subia ao quarto. A colocou num envelope de lenço sem saber se a ofereceria à prostituta que compartilhava com seu amigo ou para ele mesmo. – Guarde com cuidado. Era minha –.
Sentiu, mais uma vez, remorso pelo seu trabalho tão pouco em harmonia com o que queria fazer. Eles tinham dividido as cores, a paixão pelas pinturas e os bordéis.
– Se fizesse cores exatas, totalmente fiéis, não produziria emoções – Justificou-se.
Subiu e deitou completamente envolto em lençóis manchados, encolhido, fetal, consolando-se com alucinada liberdade.
Subiu e deitou completamente envolto em lençóis manchados, encolhido, fetal, consolando-se com alucinada liberdade.
A casa amarela estava vermelha por dentro. A tristeza duraria para sempre.
2 comentários:
Oi Gabriel.
Voce expos aqui uma sensibilidade madura, na descrição de uma vida, um sonho e a morte. Falo de sensibilidade madura, porque imagino que não seja fácil escrever tornando bela a tristeza, fictícia a realidade... "Um bonita história", que toca o coração! Emociona! Parece que a gente consegue "ver" a casa amarela e não consegue acreditar que agora esteja vermelha por dentro (tanta luz!).
Linda homenagem.
Beijo.
Eu também sou meio amarelho... apenas fico vermelho quando leio comentários que gostaram...
Obrigado. Beijo!
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