ESCRITOS DO GABRIEL

(Tentar que nossas palavras sejam, através de nós ou, quiçá, apesar de nós.
Meus textos, meus rascunhos com erros... )



"Então, um dia comecei a escrever, sem saber que estava me escravizando para o resto da vida a um senhor nobre, mas impiedoso. Quando Deus nos dá um dom, também dá um chicote – e esse chicote se destina exclusivamente à nossa autoflagelação."

Introdução do livro Música para Camaleões, de Truman Capote.

sábado, 26 de fevereiro de 2011

De andar para trás

Ainda que Cortazar, em seu impagável Manual de Instruções, do livro “Histórias de Cronópios e Famas” (1962), detalhe que “as escadas se sobem de frente, pois de costas ou de lado tornam-se particularmente incomodas” e minuciosamente explique este procedimento:
“...começa-se por levantar aquela parte do corpo situada embaixo à direita, quase sempre envolvida em couro ou camurça e que salvo algumas exceções cabe exatamente no degrau. Colocando no primeiro degrau essa parte, que para simplificar chamaremos pé, recolhe-se a parte correspondente do lado esquerdo (também chamada pé, mas que não se deve confundir com o pé já mencionado), e levando-a à altura do pé faz-se que ela continue até colocá-la no segundo degrau, com o que neste descansará o pé, e no primeiro descansará o pé. (Os primeiros degraus são os mais difíceis, até se adquirir a coordenação necessária. A coincidência de nomes entre o pé e o pé torna difícil a explicação. Deve-se ter um cuidado especial em não levantar ao mesmo tempo o pé e o pé.)”, ele mesmo completa no seu livro posterior “Último Round” (1969), que existem escadas para subir e escadas para descer, acrescentando que também pode haver escadas para ir para trás:
Os usuários desses úteis artefatos entenderão sem esforço excessivo que qualquer escada vai para trás se a gente sobe de costas, mas o que resta saber nesses casos é o resultado de tão insólito processo...”.
Como também não voltar a lembrar (e associar) que entre as diferentes criaturas literárias e mitológicas concebidas no “Livro dos seres imaginários”, Borges descreve uma curiosa ave, originária da fauna dos Estados Unidos?: “Não esqueçamos o Goofus Bird, pássaro que constrói o ninho ao contrário e voa para trás, porque não lhe importa aonde vai, mas sim onde esteve.”
Escadas e pássaros que andam para trás, parecendo importar-lhe apenas o passado, vendo as coisas regressarem e não se perdendo de vista.
Cortazar explica que é preciso olhar muitas coisas desta forma, subindo para trás: uma boca, um amor, um romance... Mas ele mesmo adverte para tomar cuidado: é fácil tropeçar e cair; há coisas que só se deixam ver quando se sobre para trás e outras que não querem, têm medo dessa subida que as obriga a despir-se tanto; obstinadas em seu nível e em sua máscara, vingam-se cruelmente de quem sobe de costas para ver outra coisa...
Já disse em outro texto que por trás de andar para trás, é o medo da rota pela frente que alimenta a vontade de querer voltar de onde, possivelmente, nunca se conseguiu sair.
Visitar o reino do ignorado exige um voo sem melancolia.

3 comentários:

Anônimo disse...

Olá, Gabriel.

Passando para pôr a leitura em dia, afinal, seu blogue é um dos mais interessantes que considero aqui na blogosfera e deixar de visitá-lo é um pecado mortal. :)

Adorei o texto! Aliás, adoro tudo a respeito de Cortazar.

Beijo grande e que seu fim de semana seja ótimo! :)

Anônimo disse...

Puxa! Que texto! Confunde o real e a ficção como se um fosse o outro (e não é?). Do absurdo está feita nossa realidade.
Gostei!

Gabriel Gómez disse...

Patrícia... Nosso silêncio continua cheio...
Obrigado pelas visitas e palavras sempre com afeto.
Beijo!

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