ESCRITOS DO GABRIEL

(Tentar que nossas palavras sejam, através de nós ou, quiçá, apesar de nós.
Meus textos, meus rascunhos com erros... )



"Então, um dia comecei a escrever, sem saber que estava me escravizando para o resto da vida a um senhor nobre, mas impiedoso. Quando Deus nos dá um dom, também dá um chicote – e esse chicote se destina exclusivamente à nossa autoflagelação."

Introdução do livro Música para Camaleões, de Truman Capote.

quinta-feira, 17 de dezembro de 2009

Não me chama estrangeiro...

Não me chama estrangeiro,
porque tenha nascido longe,
ou porque tenha outro nome
a terra de onde venho.
Não me chama estrangeiro,
porque foi outro o meu seio
ou porque tiveram outro idioma,
os contos que aninharam minha infância.
Não me chama estrangeiro
se no amor de uma mãe,
tivemos a mesma luz no canto e no beijo,
com que nos sonham iguais
as mães contra seu peito.
Não me chama estrangeiro,
nem pensa de onde venho,
melhor saber aonde vamos,
onde nos leva o tempo.
Não me chama estrangeiro,
porque teu pão e teu fogo,
acalmam minha fome e frio,
e me acolhi no teu teto.
Não me chama estrangeiro:
teu trigo é como meu trigo,
tua mão como a minha,
teu fogo como meu fogo,
e a fome não avisa nunca,
vive trocando de dono.
E me chamas estrangeiro
porque outro caminho me trouxe,
porque nasci em outra terra,
porque conheço outros mares,
e zarpei um dia de outro porto.
Mas se sempre ficam iguais no adeus os lenços,
e as pupilas chorosas dos que deixamos longe,
os amigos que nos lembram
e são iguais os beijos
e o amor da que sonha com o dia do regresso.
Não me chama estrangeiro,
trazemos o mesmo grito,
o mesmo cansaço velho
que vem arrastando o homem
desde o fundo dos tempos,
quando não existiam fronteiras,
antes que eles viessem,
os que dividem e matam,
os que roubam, os que mentem,
os que vendem nossos sonhos,
os que inventaram um dia,
esta palavra: estrangeiro.
Não me chama estrangeiro,
é uma palavra triste,
é uma palavra fria,
cheira a esquecimento e desterro.
Não me chama estrangeiro;
olha teu filho e o meu
como correm de mãos dadas
até o final do sendero.
Não me chama estrangeiro;
eles não sabem de idiomas,
de limites nem bandeiras.
Olha, se vão ao céu,
por um sorriso feito pomba
que os reúne no voo.
Não me chama estrangeiro;
pensa no teu irmão e no meu.
O corpo cheio de balas
beijando de morte o solo.
Eles não eram estrangeiros,
se conheciam de sempre.
Pela liberdade eterna e igual,
livres, os dois morreram.
Não me chama estrangeiro,
olha-me bem nos olhos,
muito além do ódio, do egoísmo e o medo,
e poderá ver que sou também apenas um homem,
não posso ser estrangeiro.


Texto que faz parte do meu conto "O último vôo" (do "A culpa é do livro") onde o personagem leva este poema de Rafael Amor, no bolso.

Um comentário:

Anônimo disse...

A literatura, e demais artes, são as melhores e mais eficazes armas contra a xenofobia.
Parabéns!

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