ESCRITOS DO GABRIEL

(Tentar que nossas palavras sejam, através de nós ou, quiçá, apesar de nós.
Meus textos, meus rascunhos com erros... )



"Então, um dia comecei a escrever, sem saber que estava me escravizando para o resto da vida a um senhor nobre, mas impiedoso. Quando Deus nos dá um dom, também dá um chicote – e esse chicote se destina exclusivamente à nossa autoflagelação."

Introdução do livro Música para Camaleões, de Truman Capote.

quarta-feira, 1 de junho de 2011

Exilados


Sobre textos de Juan Gelman, Bajo la lluvia ajena.
Poeta, jornalista e tradutor argentino.
Vencedor do Prêmio Cervantes
(o mais importante da língua espanhola) em 2007.
Na ditadura, seu filho foi sequestrado e desaparecido,
junto com sua nora que estava grávida.
Ficou exilado por doze anos.

A ele.

Exílio é salto forçado, não é mesmo, Juan?
É aquela vaca que pode dar leite envenenado
e assim mesmo nos alimenta, e não.

Desamparo de viver na intempérie,
embaixo da chuva alheia.

Sobreviventes de negações, de livros queimados,
de urubus azuis, anos de chumbo;
mutilados por ir-se, mortos por ficar.
E a dor fica.
Fica,
estrangeira,
chegando cedo, mesmo antes que nós,
pois já está aonde iremos.

Alma encolhida na mala, mudamos de país,
trocamos de roupa,
de palavras e pão; de fila para os sonhos que deixamos
                                                      [em casa, agora revirada.
Adeus, quase adeus...
O céu não é o mesmo? Acaso não é o mesmo sol?
E o tempo?

O tempo é o de não tornar-nos outros.
Terão vencido se não conseguimos ser os mesmos.

Somos os que nos vamos, os que se foram e os que não,
que desapareceram, mas ficaram.
Alguns, muitos, enterrados no mar,
cadáveres expostos do flagelo, do terror e medo
que contam quanto custou cada palavra, dita e não.
Cada um repetindo sua prosa, como oração,
antes de cair numa triste vala comum.

Assim como desapareceu teu filho, não é, Juan?
Mas sempre volta e volta e parece nunca cessar,
como se não tivesse acontecido nada,
como se não tivesses que explicar-lhe sempre
e cada vez que volta, que está morto. Que não está.

E partimos por eles, fugimos de nós.
E por isso nos guardamos na tormenta,
num exílio interno, intenso, como a morte,
como erro, como outro cheiro.
Em idiomas de não estar,
de ruas alheias, sem luminárias,
tropeçando, perdidos em gente e turnos de espera,
de misturas de passado e porvir,
de pássaros que cantam distantes, parecidos,
mas não igual.

E se de todos, nos separa uma ferida,
como envergonhar-nos das tristezas,
                                           [da raiva que cresce para dentro,
do relógio parado como um rio, desesperado?
Como pedir licença do amor triste do talho arrancado
                                                                                  [pela força,
mas sem raiz? Era para conseguir voar amarrado ao chão?
Cadê nossas mãos? Onde foi parar a flor?
                                                          [Onde cultivar o jardim?
Onde agora pôr os pés?
Do que eram, respiram e ardem derramados, sozinhos,
como esquecimento.

Onde encaixar as cinzas que ficam no ar e não caem?
Nunca conseguimos tirar a terra e esse enorme silêncio
que fazem nossos passos (quando distantes).
Somos todos os pós que levantam nossas sandálias
                                                                       [peregrinas,
os desejos, a nostalgia e seus cacos nos bolsos
                                                  [que não coincidem mais.
Refazemo-nos no espanto pelo nojo daquele veneno,
mãos com sangue em pedaços, indiferença, lágrimas
                                                                      [negras.
Mas estamos vivos, de costas a nós mesmos, mas vivos.
Com o ar que nos toca. Terra, água, vento, fogo.
Somos aquele cachorro que late e chora para a lua,
                                                                     [amassada,
consumida a cada noite.
Trocamos o rosto, o amarelecido do vento da memória
                                                                      [corrigida.
Inventamos a versão da felicidade para salvar-nos,
amamos e ardemos pelo que nos dá, e não.

A solidão conversa generosa e insaciável;
resiste o sorriso terno, calado, como atores mudos.
Onde pôr agora nossa voz futura do passado?
Onde
nossa voz?
Desbordamos a história. Não alcança o grito.

Viemos por eles, voltamos por nós,
carregando o que deixamos: amigos, pátria, mortos,
num mapa ainda possível, para proteger o que ainda nasce,
revirar a terra de mãos juntas e
bater na mesma porta quebrada.

Temos os dias contados.
Cegos, não dizemos ver o que vemos.
Medimos diferente o tempo, a distância
e a esperança que poderia encostar.
E soltamos o delicado fio da vida
bem lentamente,
aos poucos,

mas sem parar.

(Quem disse que tudo está perdido?
Eu venho oferecer meu coração...)


5 comentários:

Regina Carvalho disse...

Coração ensopadinho é delícia! bj

Gabriel Gómez disse...

Pronto... não ofereço mais ele então!
Bj.

Cassandra disse...

Oi...
A cada vez que leio esta poesia, sinto-a mais completa e complexa, como a vida e luta de Juan Gelman, que lá no México, deveria saber desta linda homenagem.
A sua sensibilidade, refinamento e concisão na expressão dos sentimentos e emoções passados por ele, encontra eco em nossos corações.
"Buscamos
cada noche
con esfuerzo
entre tierras pesadas y asfixiantes
ese liviano pájaro de luz
que arde y se nos escapa
en un gemido." (Idea Vilariño)
Beijo.
(Quando voltarem, ligue)

Gabriel Gómez disse...

Mais uma casualidade?
Estou lendo as poesias completas de Idea, uma sofrida poeta uruguaia... O livro é lindo e inspirador!
Obrigado e bj.

Anônimo disse...

A velha teoria já dita: textos longos, poemas longos parecem não ter comentários a altura por aqui... êta povinho preguiça!
Este poema é uma bela e sentida homenagem a todos os imigrantes, que por vontade própria ou pela força, continuam fazendo a diferença.
Desabafo dos bons!

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