Sobre textos de Juan Gelman, Bajo la lluvia ajena.
Poeta, jornalista e tradutor argentino.
Vencedor do Prêmio Cervantes
(o mais importante da língua espanhola) em 2007.
Na ditadura, seu filho foi sequestrado e desaparecido,
junto com sua nora que estava grávida.
Ficou exilado por doze anos.
A ele.
Exílio é salto forçado, não é mesmo, Juan?
É aquela vaca que pode dar leite envenenado
e assim mesmo nos alimenta, e não.
Desamparo de viver na intempérie,
embaixo da chuva alheia.
Sobreviventes de negações, de livros queimados,
de urubus azuis, anos de chumbo;
mutilados por ir-se, mortos por ficar.
E a dor fica.
Fica,
estrangeira,
chegando cedo, mesmo antes que nós,
pois já está aonde iremos.
Alma encolhida na mala, mudamos de país,
trocamos de roupa,
de palavras e pão; de fila para os sonhos que deixamos
[em casa, agora revirada.
Adeus, quase adeus...
O céu não é o mesmo? Acaso não é o mesmo sol?
E o tempo?
O tempo é o de não tornar-nos outros.
Terão vencido se não conseguimos ser os mesmos.
Somos os que nos vamos, os que se foram e os que não,
que desapareceram, mas ficaram.
Alguns, muitos, enterrados no mar,
cadáveres expostos do flagelo, do terror e medo
que contam quanto custou cada palavra, dita e não.
Cada um repetindo sua prosa, como oração,
antes de cair numa triste vala comum.
Assim como desapareceu teu filho, não é, Juan?
Mas sempre volta e volta e parece nunca cessar,
como se não tivesse acontecido nada,
como se não tivesses que explicar-lhe sempre
e cada vez que volta, que está morto. Que não está.
E partimos por eles, fugimos de nós.
E por isso nos guardamos na tormenta,
num exílio interno, intenso, como a morte,
como erro, como outro cheiro.
Em idiomas de não estar,
de ruas alheias, sem luminárias,
tropeçando, perdidos em gente e turnos de espera,
de misturas de passado e porvir,
de pássaros que cantam distantes, parecidos,
mas não igual.
E se de todos, nos separa uma ferida,
como envergonhar-nos das tristezas,
[da raiva que cresce para dentro,
do relógio parado como um rio, desesperado?
Como pedir licença do amor triste do talho arrancado
[pela força,
mas sem raiz? Era para conseguir voar amarrado ao chão?
Cadê nossas mãos? Onde foi parar a flor?
[Onde cultivar o jardim?
Onde agora pôr os pés?
Do que eram, respiram e ardem derramados, sozinhos,
como esquecimento.
Onde encaixar as cinzas que ficam no ar e não caem?
Nunca conseguimos tirar a terra e esse enorme silêncio
que fazem nossos passos (quando distantes).
Somos todos os pós que levantam nossas sandálias
[peregrinas,
os desejos, a nostalgia e seus cacos nos bolsos
[que não coincidem mais.
Refazemo-nos no espanto pelo nojo daquele veneno,
mãos com sangue em pedaços, indiferença, lágrimas
[negras.
Mas estamos vivos, de costas a nós mesmos, mas vivos.
Com o ar que nos toca. Terra, água, vento, fogo.
Somos aquele cachorro que late e chora para a lua,
[amassada,
consumida a cada noite.
Trocamos o rosto, o amarelecido do vento da memória
[corrigida.
Inventamos a versão da felicidade para salvar-nos,
amamos e ardemos pelo que nos dá, e não.
A solidão conversa generosa e insaciável;
resiste o sorriso terno, calado, como atores mudos.
Onde pôr agora nossa voz futura do passado?
Onde
nossa voz?
Onde
nossa voz?
Desbordamos a história. Não alcança o grito.
Viemos por eles, voltamos por nós,
carregando o que deixamos: amigos, pátria, mortos,
num mapa ainda possível, para proteger o que ainda nasce,
revirar a terra de mãos juntas e
bater na mesma porta quebrada.
Temos os dias contados.
Cegos, não dizemos ver o que vemos.
Medimos diferente o tempo, a distância
e a esperança que poderia encostar.
E soltamos o delicado fio da vida
bem lentamente,
aos poucos,
mas sem parar.
(Quem disse que tudo está perdido?
Eu venho oferecer meu coração...)
(Quem disse que tudo está perdido?
Eu venho oferecer meu coração...)
5 comentários:
Coração ensopadinho é delícia! bj
Pronto... não ofereço mais ele então!
Bj.
Oi...
A cada vez que leio esta poesia, sinto-a mais completa e complexa, como a vida e luta de Juan Gelman, que lá no México, deveria saber desta linda homenagem.
A sua sensibilidade, refinamento e concisão na expressão dos sentimentos e emoções passados por ele, encontra eco em nossos corações.
"Buscamos
cada noche
con esfuerzo
entre tierras pesadas y asfixiantes
ese liviano pájaro de luz
que arde y se nos escapa
en un gemido." (Idea Vilariño)
Beijo.
(Quando voltarem, ligue)
Mais uma casualidade?
Estou lendo as poesias completas de Idea, uma sofrida poeta uruguaia... O livro é lindo e inspirador!
Obrigado e bj.
A velha teoria já dita: textos longos, poemas longos parecem não ter comentários a altura por aqui... êta povinho preguiça!
Este poema é uma bela e sentida homenagem a todos os imigrantes, que por vontade própria ou pela força, continuam fazendo a diferença.
Desabafo dos bons!
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