Para muitos, política é um mal absolutamente necessário. Literatura é um bem absolutamente imprescindível. O restante é intermediário. Nesse contexto, o escritor é alguém que dedica seu trabalho para descobrir quem habita no seu interior, traduzindo-o em palavras, que recriam outro mundo e outro novo ser nesse universo paralelo. A valiosa criação que, na tentativa da sua arte, aventura-se a entender a si mesma, consciente e inconsciente, contando suas dores e alegrias como se foram de outros, e as histórias alheias como suas.
Mas, utilizar a escrita para criticar e mudar a realidade, ou para construir sua fantasia?
Mas, utilizar a escrita para criticar e mudar a realidade, ou para construir sua fantasia?
Em “Neruda por Skármeta”, o escritor chileno Antonio Skármeta (O carteiro e o poeta), cita o poema de Pablo Neruda, “O Tigre”, e propõe uma leitura comparativa com outro clássico tigre literário (e tema constante da sua escrita), o de Borges: “Para ver em seus micromundos como são diferentes esses dois tigres”.
Dois tigres diferenciados por estilo, métrica, realidade, diferenças literárias e políticas que acabaram afastando dois grandes escritores latino-americanos.
Conheceram-se quando jovens e como conta o próprio livro: “... com toda a cortesia fizeram o impossível para não se toparem de novo.”. Trocaram alguma correspondência cordial na primeira época e coincidiam que as opiniões políticas sejam possivelmente o menos importante em um autor. "Creio que as opiniões de um escritor não devem interferir em sua obra. O processo poético é misterioso; temos que deixá-lo por sua própria conta", definia Borges.
Mas a teoria não conseguiu conciliar a prática e,segundo Neruda, a relação não funcionou por Borges ser um anarquista de direita e ele de esquerda. Os dois foram poetas, mas Borges se tornou o grande divisor de águas pelos seus contos e prosas de ficção. Neruda acabou recebendo o prêmio Nobel em outubro de 1971. Borges foi sempre seu eterno candidato.
A ingênua posição política de apoio ao ditador Pinochet, que aproveitou sua ida ao país em 1976, para receber o Doutorado Honoris Causa da Universidade de Chile, e o condecorou com a Ordem ao Mérito Bernardo O’Higgins, possivelmente seja um dos motivos para nunca tê-lo conquistado.
Em outubro de 1979, data da anunciação do Nobel a que ele concorria, e fora outorgado a um desconhecido escritor grego "Odysseus Elytis", Borges respondeu a Sandra Pien, que foi entrevistá-lo: "Não se preocupe, trata-se de uma situação que antes de machucar me diverte. Tenho pena sim dos argentinos, que sentem como se fora a perda de um campeonato de futebol."
E o Nobel ficou sem Borges, como muitos ainda tentam justificar, desculpando a falta deste reconhecimento.
As inclinações políticas do escritor argentino, seus claros-escuros, também foram questionadas por outro grande da literatura latino-americana, o peruano Mario Vargas Llosa: “A tomada de distância com a ditadura militar foi tardia, e não diáfana o bastante para apagar o infortúnio tremendo que causaram, não só em seus inimigos, como também em seus mais entusiastas admiradores (como o que isso escreve), seus longos anos de adesão pública a regimes autoritários e manchados de sangue. Como se explica esta cegueira política e ética em quem, a respeito do peronismo, do nazismo, do marxismo, do nacionalismo, se tinha mostrado tão sensato?”
Conservador confesso, Borges recebeu constantes e pesadas críticas da esquerda por não utilizar seu reconhecimento e prestigio literário mundial, diante dos crimes cometidos pelos governos militares. Sem uma dura posição contrária nem contestadora, parecia, dessa maneira, saudar o fim do tão odiado regime peronista."... um grande número de argentinos está se tornando nazista sem sequer se dar conta", apontou num jornal de Montevidéu. O escritor considerava Perón um protagonista do cruel fascismo latino-americano, manipulador e autoritário.
A importância da obra de Borges é reconhecida na cuidadosa lista de 26 autores que marcaram a literatura mundial de Harold Bloom – "O Cânone Ocidental". O crítico coloca Borges e Neruda entre os fundadores da literatura hispano-americana do século 20.
Vejamos então cada um dos poemas que levam coincidentemente o mesmo título: “O Tigre”.
Primeiro o de Neruda, no livro “Os versos do capitão”:
Sou o tigre.
Te espreito entre as folhas,
vastas como lingotes
de mineral molhado.
O branco rio cresce
na neblina. Chegas.
Desnuda te submerges.
Espero.
De repente num salto
de fogo, sangue, dentes,
num bote exato derrubo
teu peito, teus quadris.
Bebo teu sangue, quebro
teus membros um por um.
E fico então velando
durante anos na selva
teus ossos, tua cinza,
imóvel, longe
do ódio e da cólera,
desarmado em tua morte,
envolto em cipós,
imóvel na chuva,
sentinela implacável
do meu amor assassino.
“O Tigre”, de Borges, no livro História da noite:
Ia e vinha, delicado e fatal, repleto de infinita energia, do outro lado das firmes barras e todos nós o olhávamos. Era o tigre dessa manhã, em Palermo, e o tigre do Oriente e o tigre de Blacke e de Hugo e de Shere Khan, e os tigres que foram e que serão e também o tigre arquetípico, já que o indivíduo, em seu caso, é toda a espécie. Pensamos que era sanguinário e belo. Norah, uma menina, disse: “Está feito para o amor”.
O tigre de Neruda faz amor, assassina e bebe sangue. O de Borges é um animal enjaulado, comparado aos de tantos outros escritores. Delicado e fatal, que representa toda a espécie e feito para o amor.
Dois tigres díspares. E se as diferenças já aparecem nos estilos, nos comentários que um fez do outro, são evidentes.
Segundo a revista mexicana Nexos, Neruda escreveu a um amigo o seguinte comentário: “Borges me parece excessivamente preocupado com os problemas da cultura que não me atraem em absoluto, que não são humanos... Ao meu redor sempre vejo menos idéias, sempre mais corpos, luz do sol e suor.” Ou numa outra entrevista no México, em 1974: “Não posso dizer que foi o maior, e tomara que seja cem vezes superado por outros, mas de qualquer maneira ele abriu a brecha, a atenção, a curiosidade intelectual da Europa para nossos países. Isso é tudo que posso dizer. Mas eu brigar com Borges, porque todo o mundo quer me fazer brigar com Borges, não o farei nunca. Ele não entende nada do que se passa no mundo contemporâneo e pensa que eu tampouco entenda. Então, estamos de acordo”.
Já o escritor argentino alfinetava, sobre Neruda: “Ás vezes, foi um excelente poeta, também”. E numa palestra transcrita no jornal “La Opinión” de 1976, Borges definia: “Quando era um poeta sentimental, era muito fraco, quando escreveu Vinte poemas de amor e uma canção desesperada, era inconsistente. Mas quando se deixou arrastar pelo comunismo, escreveu esplêndidos poemas. Assim, significa que precisava do comunismo como estímulo; não o que eu, leitor, preciso como estímulo.”
E como a disputa fez escola, ainda existem borgeanos e nerudistas e, por conseguinte, um a favor e contra o outro. Separando opiniões, estilos e até a própria literatura. Deixando que as idéias políticas (partidárias) afastem e divida quem faz da arte seu pão. E acabo concordando com a justificativa do escritor argentino Ernesto Sábato: “O romance deve mostrar uma realidade ao leitor, não uma realidade qualquer, mas uma escolhida e estilizada pelo artista, e escolhida e estilizada conforme sua visão de mundo, de modo que sua obra é, de alguma maneira, uma mensagem, significa algo, é uma forma que o artista tem de nos comunicar uma verdade sobre o céu e o inferno, a verdade que percebe e sofre.”
Já não se trata de Argentina ou Chile, nem do poema de um ou do outro. O mundo literário, a sensibilidade criativa, não reconhece este minúsculo perímetro.
A busca da identidade sul-americana que une uma literatura insolente, ousada, ávida por ultrapassar sua fronteira, continua fortalecendo-se desde os diferentes pontos do continente. Dois poetas, dois caminhos, a mesma arte. Cada um do seu jeito, num distanciamento que não é crucial, e que ambiciona se recriar constantemente.
Existem inúmeros textos a respeito. Descrevendo exemplos, citando fatos e argumentos. Outros desmentindo e apaziguando o suposto conflito. Aquilo que continua sendo intermediário.Independente dessa pendência, que atravessa épocas e limites literários, extrapolando ideologias e atitudes, pode-se afirmar que dois tigres cumpriram sua transcendente missão:
Um ser Borges; o outro, Neruda.
(do meu livro "Borges e outras ficções")
2 comentários:
Gostei muito. Acho sempre tremendamente injusto que grandes autores sejam rejeitados pro sua ideologia, ou por condutas pessoais, mesmo que muitas vezes reprováveis. Dia desses ex-aluno - sindicalista - me contava que andava lendo Céline... escondido, hehehe. E estava amando: grande escritor. sim, grande escritor. O resto é bobagem...
bj
Regininha... O texto é um pouco a resposta daquele outro texto e conversa sobre Vargas Llosa e Borges no teu Blog... A política separando a literatura, já tão separada por modismos, estilos e tantas outras bobagens... Boa ou ruim, o resto é resto.
Beijo.
Postar um comentário