“Ocasionalmente as obsessões permitem
a grande obra. Quem sabe de que livro
estamos lendo agora os rascunhos.”
Adolfo Bioy Casares
Borges e seu amigo Bioy Casares |
Entre os diversos livros da biblioteca, guardo um lugar especial para aqueles autografados. Levam a marca e respiram o ar do tempo em que foram datados. Sinto-me transportado àquela hora. Outros, incompreensivelmente, mesmo com assinatura e dedicatória para seus leitores, foram esquecidos e deixados de lado em algum sebo.
Que destino ou castigo imposto levou alguém a abandoná-los? Tomavam muito espaço ou a nova cor amarela das páginas não sustentou sua nova leitura? Prometeram uma literatura que não foi cumprida? Qual foi a falha? Onde foram vencidos seus acertos? Que caminhos percorreram até perder-se da estima? Talvez até contem uma história mais curiosa e triste que a do próprio livro. Sinto-me na obrigação de resgatá-los, como se estivesse devolvendo ao autor, e a suas páginas, o carinho e respeito que tiveram na hora da sua assinatura.
Antigos e contemporâneos convivem em harmonia com assinados rejeitados comprados de terceiros. Assim como o filho perdido que volta pra casa. Mesmo adotados, são próximos e amados por igual. Em muitos outros, que guardo com mais zelo ainda, aparece meu nome. Sempre exerceram grande fascínio e foram utilizados com diversos propósitos, assim como suas dedicatórias. Mas quero enfatizar uma. Ela sempre chamou minha atenção e fez que especulasse infinitas conjunturas e perguntas a partir dos detalhes registrados na página do livro.
Dono de uma vasta obra onde a fantasia e a realidade se superpõem com harmonia magistral, o escritor Adolfo Bioy Casares não pára de me surpreender. E deve ser em parte por isso que possuo, justamente dele, uma das “dedicatórias” mais curiosas e inusitadas. Suspeito que foi na 6º exposição da Feira Internacional do Livro de Buenos Aires, já que o carimbo ainda consta numa das páginas.
A impecável construção de relatos fez com que, em 1990, conquistasse o maior galardão literário da língua espanhola: o prêmio Cervantes. Bioy era rico, pertencia a uma família tradicional.
Sua fama de galã e conquistador extrapola também sua bibliografia. “Comecei a escrever para seduzir as mulheres. Elas estão sempre na origem de tudo”, confessou. E claro que diversos fatos da sua vida e obra retratam e confirmam este perfil. Casado com a escritora Silvina Ocampo, construiu, junto com Borges, um dos pilares mais fortes e renovadores da literatura de ficção Argentina e mundial. Escreveram individualmente e a quatro mãos, adotando o nome de H. Bustos Domecq e B. Suárez Lynch. Bustos fora um tataravô de Borges e Domecq um tataravô de Casares. “A invenção de Morel” (1940), a mais reconhecida obra de Bioy Casares, foi claramente a inspiradora do bem sucedido seriado americano “Lost”. Numa clara referência e homenagem, um dos capítulos exibe um dos protagonistas e habitantes da ilha lendo o referido livro.
Por muitos anos Borges e Bioy lideraram o cenário literário - intelectual. Sua escrita, amizade e gostos se fundiam de forma recíproca, no cordial papel de mestre e discípulo.
Não posso deixar de citar um comentário do seu contemporâneo, Julio Cortazar, a uma de suas obras: “Poderia ter sido algo grande, mas malogra parcialmente pela excessiva assimilação da técnica do papai Borges e de seus temas”.
“Adolfito”, como era conhecido pelos amigos e família, um dos escritores de mais prestigio e sedutores da sua época, não escondia sua paixão pelas mulheres. Silvina, também rica e onze anos mais velha, sentia orgulho da sua conquista. Compartilhavam assuntos literários e certa burla para convenções sociais. Mas defendia seu “troféu” até de suas amigas mais intimas. Nem sempre ganhava... Com o tempo acabou aceitando suas diversas amantes, aventuras superficiais, como ela mesma definia, enquanto não ameaçassem a estranha e estável união intelectual. Um dos casos mais conhecidos e duradouros foi aquele que manteve com a bela Elena Garro, esposa do escritor mexicano e prêmio Nobel de Literatura, Octavio Paz.
Silvina possuía um particular encanto que contrastava com aquilo que a si mesma considerava como “fealdade”: “Onde quer que eu vá com esta cara?” perguntava. Impossibilitada de dar um filho a seu marido e, com medo de perdê-lo, acabou concordando em adotar Marta Bioy, filha de Adolfito com uma de suas amantes.
Diversas histórias com suas mulheres faziam parte já do folclore literário. “Bioy teve amantes que o freqüentaram até o dia da sua morte”, confessa no seu livro “Os Bioy”, Jovita Iglesias, fiel empregada da casa, amiga da família e que trabalhou com o casal por quase cinqüenta anos. “Tenho um defeito, Jovita, uma grande debilidade: gosto tanto de mulheres, que se a um pau de vassoura fantasiassem de mulher, iria atrás desse pau de vassoura.” Esse tipo de confissão não era raro para ela, mas não acontecia com amigos como Borges, onde autores, obras e escritos eram quase a exclusividade dos temas das conversas. E por esta popularidade e fama é que a dedicatória que fez no exemplar do livro “Cuentos breves y extraordinários” (Editora Losada, 2º edição), recompilada juntamente com Jorge Luis Borges, toma uma dimensão diferente.
Nele textualmente está escrito:
“Para Nora Mónica Marcalain,
muy cordialmente
Adolfo Bioy Casares (sua assinatura), 1980
44 - 6586 después de las 11 a.m.”.
O telefone aparece riscado uma vez e logo escrito novamente de forma clara... Não vou indagar nem querer saber quem era a tal Nora... Mas arrisco a perguntar: - por que junto a uma dedicatória, um telefone e até o esclarecimento da melhor hora para ligar? Que telefone era esse? Por que depois das 11 a.m.? Por que tudo isto escrito num livro e não numa outra folha qualquer? Qual é o verdadeiro sentido deste recado? Por que parecendo uma coisa tão pessoal e atenciosa, Nora Mónica Marcalain, se desfez dele? Talvez o tempo tenha apagado o interesse, ou faça parte de um passado que não faz questão lembrar. Por que está comigo como mais um livro-filho desarraigado? E eu cobrando ainda alguma ingênua explicação...
Perguntas que talvez não tenham nunca uma réplica coerente.
“A vida consiste em adaptar-se à incoerência”, com certeza me responderia. Mesmo assim parece curioso, e de fato o seria, em circunstâncias normais.
Coincidentemente (ou não) tenho uma folha original das memórias de Bioy (que publicou em 1994 com também alguns bastidores amorosos). Nela, claramente altera e emenda, corrigindo à mão com sua caneta, algumas palavras do texto escrito à máquina. Comprei de um antigo colecionador de livros, documentos e manuscritos em Buenos Aires. Casualidade também ou não, seu escritório fica defronte ao apartamento de Borges, na rua Maipú. Por ironia do destino, justamente nessa folha, conta que seu interesse pelos sonhos começou quando seus pais tiraram dele um cachorro que tinha ganhado numa rifa. Eles, que não queriam o bicho, asseguraram que não existia o tal cachorro. Que possivelmente o teria sonhado...
A tal ironia é que tanto no manuscrito que tenho como no livro depois publicado, o nome do cachorro era “Gabriel”. Provavelmente, uma fantástica e premeditada vingança no tempo, por possuir agora justamente o livro que faz jus àquela fama de conquistador... Ou estarei novamente fabulando? “A gente afirma que muitas explicações convencem menos que uma só, mas a verdade é que para quase tudo existe mais de uma razão.”, justificaria. E seria uma boa saída para esta história de amores, literatura e memórias.
“Que agradável seria a vida se terminasse um pouco antes da morte...”, disse na voz de uma das suas tantas personagens. O último aristocrata das letras argentinas faleceu aos 84 anos em 1999.
Mas sou o “cachorro” que espalhou a tal dedicatória, o telefone e recado... Que possui o referido volume e divulgou mais esta “prova”.
Estamos quites agora.
Desculpa, Bioy...
Obs: A citada folha autografada do livro e o manuscrito corrigido de Bioy Casares continuam comigo para atestar a veracidade ante qualquer cético leitor.
(Do meu livro "Borges e outras ficções")
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