ESCRITOS DO GABRIEL

(Tentar que nossas palavras sejam, através de nós ou, quiçá, apesar de nós.
Meus textos, meus rascunhos com erros... )



"Então, um dia comecei a escrever, sem saber que estava me escravizando para o resto da vida a um senhor nobre, mas impiedoso. Quando Deus nos dá um dom, também dá um chicote – e esse chicote se destina exclusivamente à nossa autoflagelação."

Introdução do livro Música para Camaleões, de Truman Capote.

sábado, 26 de setembro de 2009

Meus encontros com Borges

Em três oportunidades diferentes tive o privilégio de ver e sentir a presença do escritor argentino Jorge Luis Borges em Buenos Aires. Todas, nos primeiros anos da década dos 80.
A primeira foi numa das tantas visitas à tradicional “Feira do Livro” que ano após ano programávamos com alguns amigos. Por saber de nossas preferências e diferenças literárias, permanecíamos algum tempo juntos e logo cada um tomava seu rumo, tentando descobrir achados literários ou se demorar mais em determinadas editoras ou em certos livros recém lançados. Numa dessas voltas pelos inúmeros labirintos de gente e livros, uma particular e gigantesca fila estendia-se com inúmeros leitores com livros nas mãos. Tentando encontrar onde começava a fila, e ver quem merecia tanto tempo de espera, caminhei em direção ao princípio da mesma. Uma enorme multidão rodeava Borges. Maria Kodama, que naquela época era sua secretária particular, vindo a se casar com ele algum tempo antes da sua morte, em 1986, colocava pacientemente cada livro embaixo da sua caneta para que o escritor cego o autografasse com sua diminuta assinatura. Quando lembro da enorme fila, da sua assinatura e do sorriso que se desenhava em seu rosto por cada comentário dos inúmeros leitores que Borges atendia de forma paciente, também lembro o que um dia comentou acerca disso: “tenho autografado tantos exemplares dos meus livros que quando morrer vai ter grande valor aquele que não tenha assinatura nenhuma.”. Será que ironicamente eu posso então me dar por contente pelo menos por isso? Naquele instante, olhando sua inesquecível figura e sua disposição, tive minha primeira escolha literária na prática: fazer ou não a primeira fila para comprar qualquer um dos seus livros, para depois fazer a outra enorme e demorada fila para pegar seu almejada dedicatória e talvez encarar a fera de frente?
Numa daquelas rápidas resoluções que poderemos nos arrepender a vida toda (como efetivamente depois aconteceu...), preferi continuar visitando a feira, já que senão iria gastar quase todo meu tempo fazendo unicamente essas duas filas e mais nada. Um universo de livros estava a minha espera... Naquela época da juventude o tempo parecia passar diferente. Ele não tem a fugacidade do imediato, pensamos que tudo irá durar para sempre e que sempre haverá infinidade de outras oportunidades para fazer todas as coisas. Ledo engano. Embora tenha tido mais duas ocasiões como poderão ver... Naquela noite, apesar de não ter levado o livro autografado por Borges, levei gravado seu sorriso. Um sorriso diferente, estampado em diversas fotografias que vi em inúmeros jornais, revistas, livros biográficos e obras comentadas, que ainda hoje permanece gravado. A imagem da sua mão cega assinando um autógrafo minúsculo, cobiçado, perdido na página.
A segunda vez foi na tradicional livraria da “Galeria del Este”, em frente a seu apartamento no sexto andar do edifício de número 994 da rua Maipu. Eu trabalhava a duas ruas dali, separados pela linda, grande e tradicional Praça San Martin.
Numa das tantas caminhadas de após o almoço, entrei na galeria para gastar o tempo olhando algumas vitrines. Parecia estar tendo uma visão quando, ao parar na vitrine da livraria que ficava justamente em frente ao café, vejo lá dentro Borges sentado, conversando com seu proprietário. Claro que fiquei mais tempo olhando para ele que para os livros expostos.
Também me divertia vendo como tantos outros incrédulos, igual a mim, ficaram surpreendidos com a mesma cena. Incrivelmente ninguém teve a coragem que eu esperava, e poder ir me somar e ir junto com algum leitor apaixonado pela sua literatura. Naquele tempo, com vinte e tantos anos, a coragem não aparece sempre e na medida certa como gostaríamos. Pelo menos, não para mim. Ninguém também interrompeu a conversa. E eu, mais uma vez fiquei sem meu livro autografado, sem um contato que ultrapassasse o mero contato visual, mas sim com sua imagem de escritor cego, segurando seu bastão, num terno cinza impecável, conversando certamente sobre livros e apresentando expressões amáveis com seu rosto.
A terceira foi a última e a melhor... mas, lamentavelmente, com o tempo chegou a ser a pior, devido ao aumento que o mesmo tempo lhe dá, ao exagero que lhe empresta.
O encontro foi naquela mesma praça que separava o prédio onde ele morava e meu serviço, tal qual Borges tinha observado no seu poema “A praça San Martin”, no seu primeiro livro, Fervor de Buenos Aires:
“...Como se vê bem a tarde/ do fácil sossego dos bancos!/Abaixo/ o porto anela latitudes longínquas/ e a profunda praça igualadora de almas/ se abre como a morte, como o sonho.”

Lembro que num daqueles dias de intermináveis filas de bancos, atravessei a praça e sentei num dos tantos assentos que se oferecem sob a densa sombra. Poderia alongar a descrição, narrando a paisagem verde no meio do caos da metrópole, meu estado de ânimo ou a situação do país naquele tempo. Mas não, vi Borges sentado do meu lado com sua tradicional posição de segurar seu bastão com as duas mãos. Adianta querer descrever novamente minha surpresa?
Seu rosto, se inclinava levemente, como procurando inspiração divina, olhando sem olhar o infinito da paisagem fantástica que nos rodeava.
Que melhor oportunidade para lhe dizer tantas coisas, poder perguntar-lhe tantas outras, dizer-lhe que poderia lerlhe quantos livros ele quiser, ser seu novo amanuense em troca de poder aprender junto; que poderia visitá-lo todos os dias, levá-lo a caminhar pelas ruas de uma Buenos Aires que não era mais a sua...
Novamente não consegui lhe dizer nada. Como poderia começar um simples diálogo com alguém que não enxerga que estou sentado a seu lado? E esse “alguém” é nada menos que Jorge Luis Borges! Como chamar sua atenção? Teria que tocálo, invadir o espaço sagrado da literatura universal e seus cânones.
Ninguém rebaixe a lágrima ou censure
Esta declaração de maestria
De Deus, que com magnífica ironia
Me deu os livros e a um só tempo a noite
."
O que um simples rapaz de vinte e tantos anos poderia querer com um gênio de mais de oitenta? (Com certeza voltaria a me responder como o fizera àquele repórter que também lhe manifestara ardentemente sua admiração, dizendo-lhe que era um gênio: “Não creia senhor. São calúnias”). Não tive coragem. Fiquei o máximo de tempo que alguém poderia ficar sentado num singelo banco de praça e fui embora. Mesmo assim foi momento inesquecível e eterno. Tanto que, depois desse tempo todo, continuo sonhando que volto ao mesmo momento e desta vez consigo interagir, conversar, chamar sua atenção com um simples toque da minha mão no seu ombro.
Depois a história se encarregou das voltas, das idas e do inexplicável em torno ao cíclico que tanto habitou sua literatura. Eu viajei para o Brasil onde, a partir de 1985, resido.
Tornei-me seu leitor apaixonado, pesquisador da sua vida, palestrante sobre ela e sua obra, em diversas universidades. Os anos finalmente me deram a coragem que tantas vezes me faltou na sua frente. Compartilho a mesma devoção ao livro, aos contos de ficção, às bibliotecas e por uma Buenos Aires que não existe mais. Borges morreu em 24 de junho de 1986.
Cometi o pior dos pecados
que um homem possa cometer.
Não fui feliz
.”

Em 1985, quando lhe foi diagnosticado um câncer de fígado, Borges e Maria Kodama saíram de Buenos Aires para Genebra, onde ele veio a falecer. Foi enterrado no cemitério de Plainpalais, na Suíça, depois de ter afirmado toda sua vida querer ficar para sempre em Buenos Aires. Esta discussão ainda persiste.
Seu túmulo tem na lápide a frase: “ ... E ele não terá medo”.
Em outra face da lápide, a frase: Hann Tekr Sverthit Gram/Ok Leggr Methal Theira Bert, que em sueco quer dizer: “Ele pega a espada Gram e a deposita nua entre eles”. Na parte inferior, a frase: De Ulrica a Javier Otárola. Ulrica é o conto de Borges para Maria Kodama.
E assim como ele mesmo declara no final da dedicatória do seu livro “Leopoldo Lugones”, em homenagem à obra do escritor argentino:
“...Entro; depois de trocarmos algumas convencionais e cordiais palavras, entrego-lhe este livro. Se não me engano, você não me queria mal, Lugones, e teria gostado de gostar de algum trabalho meu. Isso nunca ocorreu, mas desta vez você vira a página e lê com aprovação um que outro verso, talvez por reconhecer nele sua própria voz, talvez porque a prática deficiente lhe importe mais que a sã teoria. Neste ponto meu sonho se desfaz como a água na água. A vasta biblioteca que me rodeia está na rua México, não na rua Rodriguez Peña, e você, Lugones, se matou no início de trinta e oito. Minha vaidade e minha nostalgia armaram uma cena impossível. Pode ser (digo para mim mesmo), mas amanhã eu também estarei morto e nossos tempos se confundirão e a cronologia se perderá num orbe de símbolos e de algum modo será justo afirmar que eu lhe trouxe este livro e que você o aceitou.”
Meu sonho, com a mesma vaidade e saudade também armou outra cena impraticável. Que finalmente além de poder lhe dirigir a palavra, ainda lhe ofereço este livro Borges, que tem minha voz e estilo e assim como aconteceu na sua imaginação com Lugones, você humildemente, também o aceitou.
OBS: Hoje em dia possuo três livros autografados por Borges comprados de bibliófilos argentinos. Um por cada uma das três oportunidades perdidas.
(Prólogo do meu livro "A culpa é do livro")

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