"... Reconheço, tive mais sorte do que muitos que jamais foram encontrados. Mesmo sabendo que choveu sangue e aparentemente cessou, ainda continua pingando embaixo das árvores onde eu me refugio. Mesmo que possa estar perdido, morto por dentro e tenha feridas não cicatrizadas que continuam se multiplicando. Elas, diferentes nos inúmeros raptados, não desaparecem. Continuam mutilando-me. Combater a suposta minoria terrorista se converteu em genocídio. Nada mais terrível e sublime que contar a própria verdade, a poesia do desespero, que ainda procura na mesma praça com brancos lenços amarrados na cabeça, a outra metade da história.
Embora não sendo eterna, a dor parece interminável, suicida. O passado para muitos ainda não fala por si mesmo. Jurei tentar esquecer, mas não esqueço.
Monto meu quebra-cabeças com partes de mim, perdidas, feito de restos que não encaixam em nada. Agora qualquer mostra de afeto me deixa transparente, puro, cheio de felicidade... Mas sem saber, sem querer ou parar para entender, me pego também fugindo de alguma coisa, qualquer coisa, e corro do jeito que ainda consigo, até meu fôlego esgotar, até meu coração lento acelerar...
Algumas vezes não é nada mesmo. Tomo meus remédios, falo mal, xingo muito, grito além da minha garganta, como se continuasse a sentir tudo de novo e volto a me prometer parar com isso. Em outras, ainda choro; poucas vezes mesmo... Uma ou duas, no máximo, por dia. E rapidamente me escondo no banheiro e enxugo as lágrimas, acesas pelas tantas mortes que morri e que vi morrer.
Como se mede o ódio? Ele me inunda e bebe o resto.
Nunca mais também vi minha filha, ou melhor, vejo-a sempre... Quando “desapareceu”, jurei revirar o céu e a terra para encontrá-la. Mas parecia não estar nem em um, nem no outro... Possivelmente, esteja no mar... Agora está em todas as partes; aonde vou, vai junto, sempre. Terão vencido se não conseguisse vê-la mais... E é olhando para o céu que a vejo melhor.
Ainda luto por justiça, persigo alguns fantasmas que andam por mim e pela rua e gosto de me sentir livre. Toda vez que lembro, cuspo de nojo e revolta. Passo meu dia cuspindo.
Tudo isso, suportado por alguém contra quem ninguém formulou qualquer acusação, num tempo que é melhor lembrar esquecendo.
Guardo um velho revólver para o caso de ainda voltarem. Ou talvez sirva para mim, para eu finalmente descansar deles. Quem aparecer primeiro, leva.
E a memória não me deixa nem um minuto em paz... "
Embora não sendo eterna, a dor parece interminável, suicida. O passado para muitos ainda não fala por si mesmo. Jurei tentar esquecer, mas não esqueço.
Monto meu quebra-cabeças com partes de mim, perdidas, feito de restos que não encaixam em nada. Agora qualquer mostra de afeto me deixa transparente, puro, cheio de felicidade... Mas sem saber, sem querer ou parar para entender, me pego também fugindo de alguma coisa, qualquer coisa, e corro do jeito que ainda consigo, até meu fôlego esgotar, até meu coração lento acelerar...
Algumas vezes não é nada mesmo. Tomo meus remédios, falo mal, xingo muito, grito além da minha garganta, como se continuasse a sentir tudo de novo e volto a me prometer parar com isso. Em outras, ainda choro; poucas vezes mesmo... Uma ou duas, no máximo, por dia. E rapidamente me escondo no banheiro e enxugo as lágrimas, acesas pelas tantas mortes que morri e que vi morrer.
Como se mede o ódio? Ele me inunda e bebe o resto.
Nunca mais também vi minha filha, ou melhor, vejo-a sempre... Quando “desapareceu”, jurei revirar o céu e a terra para encontrá-la. Mas parecia não estar nem em um, nem no outro... Possivelmente, esteja no mar... Agora está em todas as partes; aonde vou, vai junto, sempre. Terão vencido se não conseguisse vê-la mais... E é olhando para o céu que a vejo melhor.
Ainda luto por justiça, persigo alguns fantasmas que andam por mim e pela rua e gosto de me sentir livre. Toda vez que lembro, cuspo de nojo e revolta. Passo meu dia cuspindo.
Tudo isso, suportado por alguém contra quem ninguém formulou qualquer acusação, num tempo que é melhor lembrar esquecendo.
Guardo um velho revólver para o caso de ainda voltarem. Ou talvez sirva para mim, para eu finalmente descansar deles. Quem aparecer primeiro, leva.
E a memória não me deixa nem um minuto em paz... "
Trecho do meu conto "Desaparecido" (Borges e outras ficções), sobre as vítimas das muitas ditaduras que passamos e seus desaparecidos políticos... Lamentavelmente, baseado em fatos reais...
Um comentário:
Impressionante. Arrepiou. Parabéns.
Postar um comentário