ESCRITOS DO GABRIEL

(Tentar que nossas palavras sejam, através de nós ou, quiçá, apesar de nós.
Meus textos, meus rascunhos com erros... )



"Então, um dia comecei a escrever, sem saber que estava me escravizando para o resto da vida a um senhor nobre, mas impiedoso. Quando Deus nos dá um dom, também dá um chicote – e esse chicote se destina exclusivamente à nossa autoflagelação."

Introdução do livro Música para Camaleões, de Truman Capote.

segunda-feira, 30 de novembro de 2009

Buenos Aires - Goofus Bird (1º parte)

“Havia chegado a uma terra de fragmentos, perdida, um lugar de coisas para as quais não havia palavras e também um lugar de palavras que não correspondiam a coisa nenhuma.”
Paul Auster - Cidade de vidro


Caminho com o risco do imprevisível. A poucos metros da rua larga, o rio e o porto. Preto de óleo, água suja, fumaça e hálitos vencidos que o vento traz e abandona na lembrança. Agora é porto Madeiro, belo, caro, cuidado. Por cima, por baixo, e dentro de mim, Buenos Aires. Demoramos em aceitar alguns fatos, não acreditamos totalmente que o tempo tenha transformado algo, deixando só alguns rastros e pistas da passagem. Quando voltei, lembrei que não haveria “mais penas nem esquecimento”. A letra do tango é uma meia verdade...
Regresso ao centro. Ao velho e novo centro de sempre, cerne de atrasos largos, metáforas. Meus olhos, que conviviam com sua rotina, parecem agora descobri-lo por primeira vez. Perdi algumas coisas por aqui... Era preciso voltar, recuar, e mesmo que minhas pisadas estejam definitivamente apagadas, ele me habita e convoca.
A memória descontinua parece sonhar-se a si mesma. As dezesseis ruas do calçadão Florida são mais de sacolas, rumores, perfumes e ternos. Pessoas vêm um pouco mais atrás. Cotovelos são pára-choques da vulnerabilidade. O outono fuma sem parar, e já não traga. Conheço essa atmosfera, a mesma geografia de monotonia variável, sua mitologia, mitos e lendas. Mas as coisas não me reconhecem. O céu continua coberto pelos descuidos da atenção, distrações da correria, que escapa nos pequenos fechos das antigas marquises. Ar de boemia portenha, cafés, livrarias e gente assobiando alguma música que já soube e agora ignoro. Mulheres lindas e das outras, parecidas, vestidas iguais, se olham, mais que os homens. Outras contrastam. Enquanto eles, sem tempo, correm; outros deitam, dormem ou vendem pequenas coisas, sentados nas saliências das ruas; marcando territórios. Mulheres com crianças estendem sua mão, e esperam. Crianças perambulam, algumas claramente sujas.
No metrô, os músicos tocam (ou trocam) suas lamúrias sonoras, por moedas. O tango se esconde em ambientes caros, que poucos conseguem frequentar.
Madrugada e tango, sombras sem domar. Desempregados fazem filas e circulam por ruas que mudaram de nome, cansadas de tanta gente. Algumas paredes continuam berrando desabafos abandonados, protestos silenciosos, de poucas palavras e de mesmas cores.
Pareço um estrangeiro; talvez o seja agora...

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