ESCRITOS DO GABRIEL

(Tentar que nossas palavras sejam, através de nós ou, quiçá, apesar de nós.
Meus textos, meus rascunhos com erros... )



"Então, um dia comecei a escrever, sem saber que estava me escravizando para o resto da vida a um senhor nobre, mas impiedoso. Quando Deus nos dá um dom, também dá um chicote – e esse chicote se destina exclusivamente à nossa autoflagelação."

Introdução do livro Música para Camaleões, de Truman Capote.

quarta-feira, 2 de dezembro de 2009

Buenos Aires - Goofus Bird (3º parte)

Desconheço algumas palavras; elas tomaram outro rumo, vestiram outra roupa de camuflagem renovada. O sotaque diluído me separa ainda mais. A cidade é um pentagrama que persegue a própria voz, sem palavras, em fotos amarelas e flores secas. Nos restaurantes se esconde, dissimulada, a realidade que finge ser outra. E fica sempre rindo no outro lado da calçada. Espero para cruzar a Avenida Corrientes, enquanto dois policiais se cumprimentam com um beijo; o velho culto à amizade, intocável, incompreendidamente popular.
Paro na porta de um prédio na rua Maipú e penso quantas vezes Borges entrou por aqui e olhou sem ver da sua varanda, o verde da Praça San Martin. Quantas vezes retratou ruas, personagens e costumes... Reinventando uma fundação mítica e poética, numa cartografia imaginária, labiríntica e apenas visível nos seus textos. E que se revelava com palavras, facas, pedra e pátios; subúrbios de rufiões e esquinas de compadritos. As muitas Buenos Aires pareciam gritar-lhe: Verbaliza-me! E assim o fez em inúmeros poemas e contos: “As ruas de Buenos Aires/ já são minhas entranhas./ Não as ávidas ruas,/ incômodas de turba e de agitação,/ mas as ruas entediadas do bairro,/ quase invisíveis de tão habituais...”. Aquela cidade já não existe. E o centro continua, segundo sua expressão: “um lugar pitoresco e desenraizado”.
Paro numa outra esquina, demoro a continuidade, e assisto o mundo passar... A cidade é, antes de tudo, um estado de afeição. Se algo não morreu, foi meu olhar, que procura, ávido, mas sem respostas. Acompanho a silhueta de paredes com meus dedos, com a mesma ternura de passar a mão em algo que dorme. Para que ela sinta, mas sem acordar. Um grito foge da boca. Depois, o passado cai da memória e fica na minha frente, provocante, mal-intencionado, de aparente liquidação. E nem assim consigo levá-lo... Teia de aranhas de lembranças, redemoinho de papéis à procura de um sentido.

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