ESCRITOS DO GABRIEL

(Tentar que nossas palavras sejam, através de nós ou, quiçá, apesar de nós.
Meus textos, meus rascunhos com erros... )



"Então, um dia comecei a escrever, sem saber que estava me escravizando para o resto da vida a um senhor nobre, mas impiedoso. Quando Deus nos dá um dom, também dá um chicote – e esse chicote se destina exclusivamente à nossa autoflagelação."

Introdução do livro Música para Camaleões, de Truman Capote.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2009

Leitores anônimos de livros por inteiro

Com este texto participo do livro "Nada tem Nome", coletânea do SESC, que terá seu lançamento em 2010 (e que já está em minhas mãos...).


Leitores anônimos de livros por inteiro

O remédio
Nem sempre é fácil estabelecer o limite entre preocupação natural e ansiedade exagerada. Pensamentos repetitivos e persistentes geram medo. Obrigam a reproduzir determinados rituais. Essa é a principal característica do transtorno obsessivo compulsivo, um distúrbio que provoca alterações na maneira de pensar, no comportamento e que pode interferir no desempenho das atividades, prejudicando muito a qualidade de vida. Ler um livro até o final pode ser sinal desta doença. É preciso ficar atento a mais este perigo, já inserido entre os jovens com evidentes deformidades emocionais.
Existe um crescente número de leitores que, escondidos no anonimato, conseguem driblar o vício com a ajuda de familiares e amigos.
A personagem desta história é Alberto (vamos utilizar este nome fictício, por razões óbvias), que poderia ser considerado um cidadão normal, não fizesse parte de um grupo de risco que precisa de tratamento. Ele integra o grupo dos “LALI” (Leitores Anônimos de Livros por Inteiro), antiga “LER” (Leitores em Retrocesso), que se reúne todas as sextas-feiras, com o propósito de procurar ajuda e contar experiências. Acompanhamos uma delas, ainda que o constrangimento por manter o anonimato tenha sido inevitável.
Mas como saber quando a leitura está se tornando um problema?
A família, que no começo não acreditou que ele estaria lendo um livro por mês – chegando à pior das fases, um livro inteiro por dia –, foi responsável pela primeira internação, quando, então, decidiu procurar ajuda.
Durante toda sua infância, foi uma criança normal. Claro que não posso garantir o que fazia no tempo em que ficava sozinho no seu quarto, mas nunca pensei que fosse nada de ruim. Tarde, descobri que só ligava a TV com o volume bem alto para fingir que estava assistindo, enquanto lia sem parar”, confessa sua mãe (de costas) entre lágrimas e soluços, “E o que é pior, demorei a reconhecer que meu filho somente parava ao chegar ao final da leitura. Ia, sem nenhum esforço, até a última página…”.
Alberto lembra que nunca desconfiou de nada, quando seu melhor amigo lhe emprestou seu primeiro livro na infância, “Naquele tempo a gente não sabia o que nos podia fazer bem ou mal e acabava aceitando tudo o que nossos amigos nos ofereciam. Quando tentei parar já era tarde, só queria continuar lendo. Disso, a querer frequentar a biblioteca, foi um passo...”, (sua voz está modificada para preservar sua identidade). Mais uma prova do quanto os sintomas isolam a pessoa do mundo.
Enquanto seu irmão frequentava diferentes lugares como bares, boates e festinhas, Alberto fingia também gostar e saía junto, mas logo voltava para ler às escondidas, simulando algum problema de saúde. Em constantes recaídas e em sua pior época, tentou até ler pensamentos e fugia da sua internação para a biblioteca mais próxima, mas prontamente foi medicado com uma dose extra de programação dominical de TV, resumo de novelas e páginas de relacionamentos.
Quando fez vestibular, chegou ao ponto de ler todos os livros pedidos na lista, sem procurar resumos nem consultar a Internet e, assim, poupar o tempo perdido na leitura.
Seus pais entenderam que precisavam de ajuda e recorreram a um psicólogo, que naquela época auxiliou bastante, segundo apuramos com a família. “É recomendável os pais ficarem atentos aos primeiros sintomas...”, esclarece o Dr. Borda, responsável pelo tratamento de Alberto. “Isolamento, olhos vermelhos e nenhuma aparência de tédio quando submetido à leitura...“.
Já adolescente, Alberto se misturava aos outros jovens mais velhos, que mentiam que também chegavam ao final da sua leitura como forma de serem solidários, mas que, definitivamente, nada ajudavam. E acreditem, sordidamente comprava livros sem nunca se importar com o número de páginas.


O Sintoma
Em hábitos esdrúxulos – como provar o cheiro das folhas, deslizar sensualmente os dedos contornando as formas de cada letra e se deliciar com o sabor de cada palavra –, encontrava alimento. Sua namorada já começara a leitura de alguns livros (chegou até a cobiçar interpretar as entrelinhas...), mas com força de vontade, conseguiu evitar o seu término. Confessou não ter acreditado ao descobrir a verdade. Mesmo assim, ficou junto de Alberto para lutar pela recuperação. “Sabemos que temos um longo trabalho pela frente, mas acreditamos que poderemos superar nossa ansiedade por mais leitura. Evitamos saber de lançamentos para evitar tentações. Desta forma, contamos com a colaboração de nossas famílias que, sempre atentas, não nos deixam sair da frente da TV”, confessa Ricardo (fora de foco), que também frequenta o LALI com seu amigo. Os dois decidiram entrar no grupo após comprovar que gostavam de comentar e decorar passagens inteiras dos livros. “Para ler mais, é preciso ler menos. Nunca faça nada prazeroso em tal quantidade que essa atividade fique cansativa”, alucinavam. “Foi nosso limite”, reconhece.
Alberto continua o tratamento, embora nos tenha chegado a notícia, quase no fechamento desta edição, de que foi pego retornando ao lugar da internação – onde ultimamente só precisava ir à noite –, com um livro de bolso escondido na sua roupa íntima. Ainda que melhore, sabe que será um doente a vida toda. “Gostaríamos de usar este espaço para alertar aqueles que têm o mesmo problema, que podem pedir ajuda, também. Que esta anormalidade tem cura e existe uma esperança se for detectado a tempo. A recuperação é possível”, finaliza sua mãe, que trabalha atualmente para fundar a OnG “Se li, não lembro”, e assim tentar ajudar a outros pais que passam pelas mesmas dificuldades.
Sem dúvida, este é um entre tantos casos similares. O propósito é advertir a sociedade sobre esta ameaça, que poderá mudar drasticamente o futuro dos jovens.
Se você também chegou até este ponto do texto, cuidado, pode ser um dos primeiros sintomas.
Peça ajuda. Pelo menos, essa é a nossa leitura superficial do problema.

Nenhum comentário:

LinkWithin

Related Posts with Thumbnails