e atrás de mim, por uma corrente,
a porta fechou.
Fiquei sem chaves e às escuras
sentindo as vozes dos vizinhos
através de suas portas.
É transitório, disse-me;
mas assim também poderia ser a morte:
um corredor escuro,
uma porta fechada com a chave dentro,
o lixo na mão.”
...No estreito corredor sem luz, a escuridão alerta meus outros sentidos. Escuto vozes, o elevador parado, fina claridade de geladeira entreaberta, e a noite caiu aqui dentro. Há sombras. A luz automática, que liga se registra movimento, não acendeu. Ou estou quieto, invisível a seu sensor, ou já não adianta pensar que posso mover-me.
Poderia usar a escada, mas é mais uma porta. Trás uma outra, que não sei qual é, ouço que estou de lado de fora. A chave ficou dentro; parece reclamar a posse, a retenção do limite. O lixo, como bagagem de mão, reivindica agora sua presença com invasivo odor imediato. O que me angustia e aguarda?
Se juntássemos todos os começos gastos, o tempo de espera das salas de espera, das filas, as falas, discursos introdutórios, bulas, aberturas, ameaças, apresentações, prefácios, títulos que precedem, avisos, lembretes, advertências, explicações, propaganda inicial, medos, demoras e promessas daquilo que supostamente virá, com certeza não teríamos história nenhuma.
Lembro do Unamuno: o homem é um “animal guarda-mortos”. O lixo é a morte do dia que recolhemos e tentamos jogar fora, mas chega nossa vez. Os outros, que guardamos, retidos, continuam concentrados, povoando-nos.
Estamos agora juntos no corredor escuro e sem chaves. Nem nu nem vestido, do lado de fora. Saberemos reconhecer seu perfume, ou para a perversão do olfato resultarão agradáveis os cheiros fétidos? Talvez o detrito, resto deste mundo, seja a matéria prima do outro, visto ao contrário, num infinito espelho de costas que desordena o próprio caos, e se incorpora com uma lógica firme, resolvendo contradições e revelando mentiras. As coisas parecem não ser suficientemente complicadas para entendêlas.
Um corredor cada vez mais estreito, uma porta com a chave dentro e o lixo na minha mão: é a mesma passagem no estagio final. Não foi uma corrente que fechou a porta...
Concordo: “Que agradável seria a vida se terminasse um pouco antes da morte...”, e tudo não continua, apenas recomeça. Vou descansar para mudar de cansaço. Escuto agora uma música... Estou de mãos vazias.
O elevador, minguado, apertado, que não sei se sobe ou desce, está me esperando.
Do meu livro "Borges e outras ficções".
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