ESCRITOS DO GABRIEL

(Tentar que nossas palavras sejam, através de nós ou, quiçá, apesar de nós.
Meus textos, meus rascunhos com erros... )



"Então, um dia comecei a escrever, sem saber que estava me escravizando para o resto da vida a um senhor nobre, mas impiedoso. Quando Deus nos dá um dom, também dá um chicote – e esse chicote se destina exclusivamente à nossa autoflagelação."

Introdução do livro Música para Camaleões, de Truman Capote.

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Só empresto o que puder presentear

Odeio emprestar livros. Gosto de tê-los comigo, de relêlos se quiser, de tocá-los e sentir o cheiro da sua presença. Saber que eles estão aguardando, que já foram lidos e ainda esperam renovados a cada leitura. Mas como nunca consegui não emprestá-los, fiquei sem alguns e acabei perdendo não só o livro como a memória das pessoas a quem o emprestei.
Pensei fazer igual ao tempo dos antigos e valiosos manuscritos, onde era costume escrever pragas nos livros, amaldiçoando quem os furtasse. Cheguei até copiar um texto daquela época para colocá-lo em qualquer página e quando menos o leitor esperasse, dar de cara com a mensagem: “A quem furtar um livro da minha biblioteca, que se transforme em uma serpente suas mãos e o subjugue, que seja atacado por paralisia e todos os seus membros sejam amaldiçoados. Que agonize em dor, gritando perdão. Que não haja descanso para sua agonia, até que se afunde na dissolução. Que os vermes de livros roam suas entranhas...”.
Mas ninguém precisou agonizar, ser atacado ou roído pelo remorso. Muito menos pedir perdão por isso. Entendi que, ao longo do tempo, nossa memória vai formando uma biblioteca díspar, feita de livros, lembranças ou de páginas soltas, e tal vez em essas páginas esteja já o essencial, e cuja leitura foi uma felicidade e que gostaríamos inconscientemente de compartilhar. Classificar minha biblioteca foi uma maneira silenciosa de exercer o artifício do meu julgamento e, com ele, poder dividir meus gostos.
Comecei emprestando aqueles sem os quais eu poderia viver. Mas a dor foi de flagelo. Essa norma foi logo substituída por outra que descobri com a perda: só empresto o que puder presentear. Mesmo sabendo que ainda que comprando muitos outros, não serão nunca como esses. Que é um livro, se não o abrimos? Eles guardam parte de nós e merecem nosso cuidado.
Um único livro ameaçado ocasiona uma perigosa perda na biblioteca universal. Eles eternizam nossa memória. Por isso acredito estar cercado de belas metáforas.
Talvez cada um de nós seja uma mera letra no complexo texto cifrado do universo...


Trecho do conto "Só empresto o que puder presentear", do "A culpa é do livro".

2 comentários:

Terezinha disse...

"Talvez cada um de nós seja uma mera letra no complexo texto cifrado do universo..."
Todos somos apenas uma pecinha em todo universo. E quando nossas peças se encaixam em outras peças, é porque nossa missão foi encontrada.
Algumas vezes passamos anos tentando achar as peças que se encaixem, e vamos de uma peça a outra até encontrar aquela que tem o formato que se encaixa em nossa. E isso é místico, pois quando acontece, tudo em nossas vidas acontecem...
Por isso, emprestar livros ou da-los de presente são formas encontradas de partilharmos com as peças ao nosso redor nossas experiencias e descobertas...

Gabriel Gómez disse...

Terezinha... O conto trata justamente disso. Eu coloquei um trecho, mas sua continuação aponta para o papel que cada um, sabendo ou não, representa dentro desta misteriosa e reveladora escrita... Obrigado pelo comentário.

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